Viagem de de Bike pelos Estados do RJ e SP. Verão 2003
Viagem
de Bike pelos Estados
do Rio de Janeiro e de São Paulo |
O Dedo de Deus pertencente a Guapimirim (RJ). Foto: Fernando Mendes.
Viagem
de bicicleta Verão 2003 Rio
de Janeiro - Litoral Sul Fluminense - Vale
Histórico no Cone Leste Paulista - Região Serrana Fluminense - Região
dos Lagos - Rio de Janeiro | |||
Data | Do
(de) | Para | Quilometragem |
28/12/2002 | Rio de Janeiro (RJ) | Angra dos Reis (RJ) | 182 |
29/12/2002 | Angra
dos Reis (RJ) | Paraty
(RJ) | 100 |
30/12/2002 | Paraty (RJ) | Trindade (RJ) | Ônibus |
31/12/2002 | Paraty
(RJ) | Cunha
(SP) | 46 |
01/01/2003 | Cunha (SP) | Queluz (SP) | 109 |
02/01/2003 | Queluz
(SP) | Bananal
(SP) | 90 |
03/02/2003 | Bananal (SP) | Quatis (RJ) | 52 |
04/01/2003 | Quatis
(RJ) | Conservatória
(RJ) | 54 |
05/01/2003 | Conservatória (RJ) | Rio das Flores (RJ) | 69 |
06/01/2003 | Rio
das Flores (RJ) | Três
Rios (RJ) | 77 |
07/01/2003 | Três Rios (RJ) | Teresópolis (RJ) | 88 |
08/01/2003 | Teresópolis
(RJ) | Nova
Friburgo (RJ) | 90 |
09/01/2003 | Nova Friburgo (RJ) | Sana (RJ) | 67 |
10/01/2003 | Sana
(RJ) | Araruama
(RJ) | 120 |
11/01/2003 | Araruama (RJ) | Rio de Janeiro (RJ) | 130 |
Total
de quilômetros pedalados em 15 dias de viagem. Média
de 85,2 km/dia. | 1.274 |
O Rio de Janeiro não é uma cidade
exuberante. É cidade erguida em lugar exuberante - e essa distinção é
essencial. Porque cidade é coisa que nós construímos, enquanto lugar é dado
pela natureza. [...] é uma cidade grande
que ocupa o pouco que há de terra habitável entre a montanha, o mar e as
lagoas. [...] dada a geografia, produzindo muitos aterros ao
longo dos séculos.
A
ideia de fazer um giro pelos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo era antiga.
Chegou hora de planejar uma empreitada por terras fluminenses e
paulistas.
Nomeei
a aventura de "Périplos Fluminense e Paulista", alternando
cidades conhecidas e outras não. Fui da Capital Federal [onde moro atualmente]
à capital fluminense [onde nasci] de ônibus.
28/12/2002 |
||
1º
dia |
Rio
de Janeiro (RJ) a Angra dos Reis (RJ) |
182
km |
Deixei
o Rio de Janeiro (RJ) no sábado, 28/12/2002, sob chuva fina, às 4 horas, em
plena escuridão. Ingressei na ciclovia da orla e dei as primeiras
pedaladas.
Os quiosques à beira-mar estavam cheios. A turma aproveitava para se despedir do último sábado de 2002. Muitos me olhavam de forma espantada: “aonde será que esse cara vai a essa hora com toda essa bagagem e debaixo de chuva"? imaginava. Passei por Ipanema e Arpoador. À minha direita, o Atlântico Sul.
A Rua Francisco Otaviano, que liga o Arpoador à Praia de Copacabana, desemboca no Posto Seis, de onde, mesmo a distância, observei o Morro do Pão de Açúcar [1], encoberto por nuvens encharcadas de umidade. A chuva bailava ao sabor do vento.
O Rio nasceu [em 1565] entre o Pão de Açúcar e o
Morro da Urca e cresceu entre o São Bento e o Morro do Castelo.
Ao final da orla de Copacabana [2], na divisa com o bairro do Leme, dobrei à esquerda e segui pela Avenida Princesa Isabel.
Transpassei o Túnel Coelho Cintra, que marca a divisa entre os bairros de Copacabana e Botafogo, e inaugurei as primeiras pedaladas pela Avenida Lauro Sodré. A Casa de Shows [o Canecão] passou pelo meu través leste e, a alguns metros à frente, dobrei à esquerda e passei a pedalar pela Avenida Pasteur, que "deságua" na Enseada de Botafogo [3].
Harper Collins, 2017. p. 138.
Fonte: 1565 : enquanto o Brasil
nascia / Pedro Dória. - 1ª ed. - Rio de Janeiro :
Harper Collins, 2017. p. 122.
Passei pela Praia do Flamengo [4], Museu de Arte Moderna (MAM), Aeroporto Santos
Dumont, chegando à Quadricentenária Praça XV [5]. Eram 5h. Dali segui pela Rua da
Assembleia - antiga Rua da Cadeia - até alcançar a Rua 1º de Março - antiga Rua Direita - e chegar à
Avenida Presidente Vargas, defronte à Igreja da Candelária [6] Eram
5h 11.
O majestoso relógio da Central do Brasil, inaugurado em 1943 e maior que o Big Ben, marcava 5h 18. A chuva fina continuava. Havia pouco movimento nas ruas do centro da cidade. A chegada à Rodoviária Novo Rio (atualmente Rodoviária do Rio) foi tranquila.
Atualização: O relógio da Central do Brasil, no Centro do Rio de Janeiro, passou - em 2018 - pela maior reforma dos últimos 25 anos. Foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural em 1996.
Fonte: www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/5223-26-08-2018-relogio-da-central-do-brasil-e-revitalizado.html. Acesso: 26/08/2018.
Atravessei a Avenida Rodrigues Alves, passei pelo [extinto] JB, na Avenida Rio de Janeiro, e penetrei na [imensa] Avenida Brasil, no bairro do Caju. Fiz a primeira parada em frente à Fiocruz, o Tabernáculo da Ciência. Estava ensopado. Chovia a cântaros.
Concentrei-me no trecho que estava por vir, o pior daquele dia: pedalar a extensão da Avenida Brasil [58 quilômetros] até Santa Cruz, que marca início da Rodovia Rio-Santos.
Transpassei os bairros de Bonsucesso, Maré, Ramos, Olaria, acesso à Ilha do Governador [7], Mercado São Sebastião (Penha), Jardim América, Cordovil, Vigário Geral, Parada de Lucas, Vista Alegre, Irajá, Realengo, Padre
Miguel, Bangu, Vila Kennedy, Santíssimo, Campo Grande e, finalmente,
Santa Cruz - na Avenida João XXIII -, o
quilômetro final desta imensa Avenida Brasil, na Zona Oeste. Eram 9h.
[7] - antiga Ilha de Paranapuã.
Fonte: 1565 : enquanto o Brasil nascia / Pedro Dória. - 1ª ed. - Rio de Janeiro : Harper Collins, 2017. p. 225.
A Avenida Brasil naquele ponto se torna uma pequena via de mão dupla. Ingressei na rodovia Rio - Santos. Faltavam 120 quilômetros para Angra dos Reis (RJ).
O Sol, que deu o ar da graça e cada vez mais alto e impiedoso, voava para o zênite. O calor estival (próprio do verão) não tardou a ser sentido quando a primeira subida apareceu pela proa: o acesso ao Túnel Muriqui - Itacuruçá (RJ), no km 408. De casa até aquele ponto, o trajeto é predominantemente plano.
No interior da galeria, minava água em profusão das rochas, resultado das chuvas das últimas semanas. Havia uma enorme poça no interior da "toca" e, à medida que os veículos passavam, eu ia sendo molhado com força.
Ao sair na extremidade oposta, estava ensopado. Mas a roupa secou logo, pois os tecidos do short e da camisa são de dry-fit (ajuste seco, ao pé da letra) e logo estava pronto para outro banho, que não tardou a acontecer, ao atravessar o segundo túnel, no km 430, o Túnel de Mangaratiba (RJ).
Era sábado, dia 28/12/2002 e, às margens da rodovia Rio-Santos, foi possível avistar vários adoradores de Iemanjá, que faziam seus rituais à Rainha das Águas, em pequenas cachoeiras às margens da estrada.
Mães e Pais de santos misturavam-se aos seguidores
da seita e aos curiosos, que lotavam o acostamento da estrada para ver o
cerimonial.
Por volta das duas da tarde, parada maior, talvez uns 20 minutos, em um posto BR na região do Estaleiro Verolme. Calor saariano. Água de coco (coco é sem acento) a R$ 0,50.
Lembrei da viagem que fiz com minha filha Suzana (a caçula) por aquelas bandas no verão de 1997, ocasião na qual sequer imaginei percorrer o mesmo trajeto de bicicleta.
Faltava pouco para Angra dos Reis (RJ), que não tardou a aparecer. Primeiro vi as favelas que circundam a cidade e depois avistei-a, lá embaixo, parecendo adormecida no tempo.
Num empório próximo ao cais da Lapa, tigela de açaí acompanhada de um delicioso sanduíche de frango. Estada no Hotel Eri, uma casa antiga transformada em pensão.
O quarto parecia o mapa do Chile, ou seja, estreito e cumprido. A bicicleta ficou no quintal. A proprietária, uma senhora muito idosa e que falava pelos cotovelos, pediu para não colocar a bike no quarto, pois poderia sujar as paredes. Não caberia mesmo. O quarto é tão estreito que eu, com 1,80m de estatura, não cabia deitado entre as paredes. Mal havia espaço entre a cama e a dita parede.
Nada de TV no quarto, mas estava bom assim mesmo. O preço foi bem em conta e os hotéis, além de caros, estavam lotados. Depois do banho fui dar uma volta pela cidade. Jantei cedo e voltei à pensão para descansar. Havia pedalado, porta a porta, naquele dia, 182 quilômetros. No dia seguinte, mais 100 quilômetros até Paraty (RJ).
Comecei a ler, de José Saramago, a Bagagem do Viajante, tema bastante sugestivo para a ocasião. É um livro de contos.
Adormeci antes do terceiro parágrafo e dormi um sono pesado, sem sonhos até ser acordado, às 6 horas da manhã, por uma ensandecida sinfonia canina.
É a minha sina ser despertado dessa forma. Onde
moro, em Brasília (DF), é o mesmo inferno, principalmente nos finais de semana.
Mesmo a tantos quilômetros da minha casa, não fiquei livre da ladainha
matutina.
29/12/2002 |
||
2º
dia |
Angra
dos Reis (RJ) a Paraty (RJ) |
100
km |
Tomei café em uma
panificadora próxima à pensão, arrumei meus haveres e parti para Paraty (RJ),
ingressando na rodovia Rio – Santos (BR-101) às 8h 30.
Fazia muito calor, mais do que no dia anterior, e o movimento de automóveis na estrada aumentava a cada minuto. A passagem de ano por aquelas bandas é [sempre] muito concorrida.
Angra dos Reis (RJ), assim como a maioria das cidades brasileiras, não cresce, incha. Nos arredores existe uma expansão da cidade chamada Nova Angra, formada por casas inacabadas e ruas sem pavimentação.
Na região do Frade, as praias são belíssimas. Ali a nobreza tem suas casas de veraneios e seus barcos suntuosos para passeios pela Baía de Angra. Do alto de uma ponte, tirei fotos espetaculares da região. Os viajantes, dos habitáculos de seus automóveis, não têm a mesma oportunidade que os ciclistas têm, ao ver as belezas da Rio – Santos.
Das pontes, por exemplo, o visual é magnífico, mas
não há acostamento para veículos de quatro ou mais rodas. Mas para bicicleta, os
espaços existentes [nas pontes] são suficientes e seguros para parar e apreciar
a paisagem. Logo surgiu a Usina Nuclear, na Praia de Itaorna, pedra podre em
língua Tupi.
A Usina Nuclear, hoje nas mãos da Eletronuclear, ainda continua a suscitar debates polêmicos. De um lado os elevados gastos, cerca de US$ 30 bilhões consumidos em uma empreitada cuja relação custo/benefício é bastante criticada: o elevado valor de implantação para um benefício pífio, pois a Usina gera 3% da energia elétrica consumida no País. Seu potencial é tão baixo que sequer aparece nos balanços energéticos elaborados pelo M.M.E.
Do outro lado existem aqueles que defendem que, a despeito do que foi gasto, a Usina de Angra colocou o Brasil em uma era tecnológica e o País passou dominar o know-how de enriquecimento de urânio, a partir de um projeto da Marinha do Brasil.
Mas o cerne da discussão está no fato de a
Alemanha, que nos vendeu a tecnologia nuclear a peso de ouro, ter anunciado [em
2000] a desativação de suas usinas nucleares, no máximo, em 20 anos, por
entender que essa forma de obtenção de energia é perigosíssima para o ambiente,
além do alto custo de operação.
Continuei a comprar água de coco por R$ 0,50. Muitos ambulantes à beira da estrada. O movimento de fim de ano crescia, todos estavam querendo faturar o seu.
Por volta do meio-dia deu lerdice total. O calor era sufocante. Do asfalto subia um bafo, impressão de estar com o inferno sob meus pés. Se tivesse naquela hora um termômetro de precisão, não me espantaria com temperaturas registradas na casa dos 45°C.
Silêncio das rodas em um ponto de ônibus à beira da estrada. Deitei-me no banco. Não havia ninguém esperando pelos coletivos que rodam por ali. Continuei deitado. Senti que era preciso esperar um pouco antes de prosseguir. Calor demencial. Faltavam uns 25 quilômetros. Cochilei sob o "chilreio" monótono das incansáveis cigarras.
Paraty (RJ) foi alcançada às 14h. Abandonei a
Rio-Santos, dobrei à direita no trevo central da BR-101 e entrei na cidade pela
Avenida Roberto Silveira. Em frente à agência do Bradesco, dobrei à esquerda e
segui pela Rua João do Prado até o final. Lá, dobrei à esquerda e cheguei à
Hospedaria Canto do Rio, um Albergue da Juventude, show de bola.
Fica às margens do rio Perequê-Açu, tem ótimas instalações e excelente localização.
No albergue todos ficaram espantados quando disse estar vindo do Rio de Janeiro (RJ) e ainda ter mais de 1.000 a percorrer até voltar para casa. Ficamos conversando até às 17h, quando saí para almoçar. Nem senti o tempo passar. Fui o último hóspede a chegar naquele 29/12/2002, um dia muito quente e com 100 quilômetros pedalados em 5 horas e meia.
Nessa época de fim de ano, hospedar-se em Paraty (RJ) é uma tarefa muito dispendiosa. As pensões e hotéis utilizam sistema de pacotes: de R$ 600,00 a R$ 900,00 cinco dias para o casal.
Como viajei sozinho, nem hotéis nem pousadas quiseram hospedar-me, muito menos para pernoite. O jeito foi procurar outra forma de acomodação. Recorri à Internet e nos sites de busca encontrei a Hospedaria Casa do Rio. Diária de RS 50,00.
Embora pareça um preço salgado para uma pessoa, acabou ficando em conta, se comparado aos preços dos pacotes vigentes nos demais estabelecimentos paratienses.
Terminado o almoço fui à rodoviária obter informações quanto aos horários dos ônibus para a praia de Trindade. Depois fui ao centro histórico. Paraty (RJ) estava lotada. Às 18 horas, os alto-falantes das igrejas choraram no ar a Hora do Ângelus e a canção Ave-Maria encheu o ar da cidade.
À noite o Centro Histórico da cidade parecia uma estufa. O calor acumulado durante o dia esquentou o asfalto, as paredes e o ar. Voltei ao centro histórico, atravessei a Rua da Lapa, em toda a sua extensão, e cheguei ao cais, localizado na Rua Fresca, que de fresca não tem nada.
As igrejas estavam iluminadas, as ruas fervilhavam de turistas - muitos argentinos e franceses -, os restaurantes lotados, as lanchonetes e os cafés eram pequenos para tanta gente. Era véspera de ano novo. Fazia um ano da morte da Cássia Eller.
Como era Paraty em 1640, época da fundação? Seria
tão concorrida? Do ciclo do ouro, no século XVII, ao ciclo do turismo
atualmente, Paraty (RJ) tem mais de 300 anos de história. Será que aquela
multidão que lotava a cidade tem conhecimento dessa história? Será que sabem,
por exemplo, que o porto de Paraty era o segundo mais importante do Brasil
Colônia? No início do ciclo do ouro, uma viagem de Ouro Preto a Paraty,
transportando o precioso metal, era feita em um mês.
30/12/2002 |
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3º
dia |
Paraty
(RJ) e Trindade (RJ) |
Ônibus |
Segui no ônibus das 10h, que saiu às 11h, para a praia de Trindade [8].
[8] - A
estrada de Trindade passa pelo morro do Deus-me-livre, assim conhecido por sua
dificuldade em atravessá-lo, principalmente em dia de chuva.
Hoje, a situação mudou. A estrada
está asfaltada. Isto é bom para os moradores e para os turistas, mas assusta e
preocupa quando vemos um volume exagerado de pessoas, como em feriados
prolongados, podendo trazer importantes consequências para o ambiente.
Na estrada, à esquerda, está o
começo de uma trilha (que não está sinalizada) que vai para a Praia Brava.
Depois de 30 minutos de caminhada, chega-se a uma praia espetacular, que está
sempre deserta, rodeada de Mata Atlântica.
As ondas são fortes e tem fonte de
água doce. Voltando à estrada e seguindo em frente, chega-se à Praia do
Cepilho, a preferida dos surfistas. Um barzinho localizado estrategicamente
acalma a sede, a fome e o cansaço. Atravessando em seguida um pequeno riacho,
avista-se logo a Vila.
Ao longo de toda a Vila está a Praia de Fora ou dos Ranchos. Esta denominação se refere aos "barzinhos" de beira-mar onde se pode matar a sede, a fome e, se for época de lua cheia, pode-se esperar o nascer [da lua] no horizonte. É de arrepiar!
As pedras arredondadas, que dão beleza ao lugar, estavam cheias de banhistas que mais pareciam morsas antárticas aquecendo-se aos primeiros raios solares do Verão Austral.
Fui a Trindade de ônibus, pois não teria onde deixar [na praia] a bicicleta em segurança. Fiz longas caminhadas até as partes mais distantes da muvuca e consegui fotos sensacionais. O banho de mar foi magnífico.
Do alto da Serra do Mar descem vários rios que proporcionam belos banhos de água doce. Existem várias trilhas que levam às praias da região. O calor era forte e desaconselhável, àquela hora, para encarar o sobe e desce de morros para alcançar as praias.
Na hora do almoço não havia um lugar sequer nos bares da praia. Com muita boa vontade, um argentino, dono de um pequeno restaurante, acrescentou uma mesa para mim, mesmo assim a comida demorou cerca de uma hora para ser servida. Gostosa, porém cara.
Resumindo: o passeio à Praia de Trindade foi um PI (Programa de Índio), cotado com 10 machadinhas. Ônibus lotado, atrasado, gente em profusão por todos os lados, cerveja quente, trânsito engarrafado no vilarejo e muito, muito calor. Valeu pelo banho de mar e pelas fotos.
Retornei a Paraty (RJ) ao entardecer. Jantei e fiquei até tarde conversando com o pessoal do albergue. Enquanto eu fui a Trindade, eles foram passear na antiga trilha do ouro e tomar banho nas várias cachoeiras localizadas na Estrada Paraty-Cunha, a RJ-165.
Dormir pensando no trecho a percorrer no dia seguinte. Embora fossem apenas 57 quilômetros de Paraty (RJ) a Cunha (SP), sabia que enfrentaria um aclive único, de 15 quilômetros até a divisa dos Estados do Rio e de SP, local no qual a rodovia RJ-165 passa a ser a SP-171. Isso mesmo, uma subida de 15 quilômetros sem nenhum trecho plano ou declive.
31/12/2002 |
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4º
dia |
Paraty (RJ) a Cunha (SP) |
46
km |
Último do ano e o mais quente até então. Às 8 horas da manhã a temperatura, no Centro Histórico de Paraty (RJ), era de 30°C. Cometi um grave erro ao não sair cedo. Subestimei os 46 quilômetros a percorrer naquele último dia do ano.
Antes de pegar a estrada, fui ao
Centro Histórico para umas fotos. O céu estava esplendidamente azul e sem
nuvens. Não poderia perder aquele cenário. Se não o fizesse, me arrependeria.
Deixei Paraty para trás às 12h sob um
sol escaldante. Pela Avenida Roberto Silveira cheguei ao entroncamento com a
BR-101, atravessei-a e ingressei na RJ-165, rumo, inicialmente, à cota 1.540 m,
local da divisa RJ/SP.
Desse ponto em diante, ascensos
predominam, exceto na chegada a Cunha (SP), onde uma subida de três contínuos
quilômetros, encerraram a jornada.
Cunha (SP), estância climática
localizada no alto da Serra do Mar, está na cota altimétrica de 1.000 mm.
As primeiras pedaladas pela RJ-165
foram suaves. Os quilômetros iniciais são planos e bastante arborizados. No
povoado Pantanal, a rodovia faz uma curva de 90° à direita, desembocando na
ponte de madeira sobre o rio Perequê Açu. A água estava convidativa para um
banho. O calor era sufocante.
Concluída a travessia da ponte, curva
de 90° à esquerda e o terreno inclina-se em obstinada ascensão - sem tréguas
- pelos 15 quilômetros seguintes.
Comecei a pedalar em forte ângulo de subida, semelhante àquela ladeira que liga o Rio Sul à Praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana. A velocidade caiu bastante, as curvas ficaram fechadas, iguais às da Estrada do Corcovado e, então, senti o quanto a etapa é cascuda.
No 8º quilômetro, percorrido em 1
hora, parei no povoado de Penha para tomar água. A igreja, como todas nomeadas
"da Penha" - que significa penhasco -, está no alto de um
promontório, às margens da Rodovia RJ - 165.
Um beiral,
construído no entorno do templo, permite observar a paisagem formada pela Serra
do Mar, atapetada pela Mata Atlântica.
Igreja da Penha. Foto: Fernando
Mendes. Trecho entre Paraty (RJ) e Cunha (SP).
A proprietária do empório ficou
surpresa quando lhe disse que estava indo para Cunha (SP): “o senhor está
muito animado moço". "Cunha fica longe e têm muitas subidas,
além do trecho de terra que é ruim demais”. Explico: pouco antes da divisa
RJ/SP, a estrada atravessa o Parque Nacional da Serra da Bocaina. O IBAMA não
permite que esse trecho (de 10 quilômetros) seja asfaltado.
Em 2015, esse trecho [10 km] foi calçado com bloquetes e está ótimo para pedalar.
À medida que subia, o calor e a
inclinação da estrada aumentavam. O movimento de veículos rumo a Paraty (RJ)
era intenso. Na direção que eu seguia, era inexistente. Afinal quem iria passar
o ano novo em Cunha (SP)? Eu!
Existem chácaras, casas de veraneio,
algumas pousadas e ateliês ao longo da RJ-165. Quanto mais subia, mais bonita
ia ficando a paisagem da região. Era possível ver a Baía de Paraty, lá embaixo,
em meio à vegetação da Mata Atlântica.
Paraty (RJ) vista da
Rodovia RJ - 165. Foto: Fernando Mendes.
Às 17h, após ter pedalado 12
quilômetros, a estrada de asfalto deu lugar à estrada de terra ou em leito
natural. (devidamente pavimentada desde 2015).
Iniciei a parte mais difícil daquele
dia: pedalar em meio às erosões que abundam na estrada, valas feitas pelo
escoamento superficial das águas das chuvas, pedras soltas (do
tamanho de melões) e frenético movimento de veículos descendo rumo a Paraty
(RJ).
Isso tornou cada metro pedalado um
suplício. O grau de dificuldade crescia e não foi possível manter-me
equilibrado sobre a bicicleta. A saída foi empurrá-la. Mas se tivesse que
empurrá-la pelos próximos 10 quilômetros, chegaria a Cunha (SP) depois da
virada do ano.
Trecho entre Paraty (RJ) e Cunha
(SP). Foto: Fernando Mendes.
Trecho
entre Paraty (RJ) e Cunha (SP). Foto: Fernando Mendes.
Não existem pontos de apoio nesse trecho. Ou continuava empurrando ou voltava a Paraty (RJ).
Enquanto decidia o que fazer, parou um carro (Pick-Up Corsa) ao meu lado, com dois sujeitos a bordo. O que dirigia perguntou-me: “e aí mano"! "Vai aonde?" “Pretendo chegar a Cunha (SP) ainda hoje”, respondi. “Mas essa estrada está ruim para pedalar”. "Têm muitas pedra e valas", completei. “Bota a bike aí na caçamba que eu te levo até Cunha”, falou o motorista. “Vou para Lorena (SP) e te deixo em Cunha (SP), complementou”. "DEMOROU"!
Agradeci e não perdi tempo. Ajeitei a bicicleta na caçamba da caminhonete, acomodei-me como foi possível e fui comendo poeira e sacolejando igual em caminhão pau de arara.
Esses dois camaradas caíram do céu. Foi uma bela ajuda. Se não fosse assim, não sei se chegaria ao meu destino naquele ano. Talvez, no seguinte.
Quando a estrada de terra acabou, pedi para que parassem. O Sol ainda alto, por conta do Horário Brasileiro de Verão, testemunhava tudo. À minha volta, tudo era um verde contemplativo.
Desci a bike da caçamba, agradeci
a eles e voltei a pedalar no asfalto. Naquele ponto, o Estado do Rio de Janeiro
termina e começa o Estado de São Paulo. A Rodovia RJ-165 passa a ser Rodovia
SP-171.
Exatamente na divisa de estados, se dá a “virada” da serra. A subida de 15 quilômetros foi vencida. Eram 18h. Restavam duas horas de luz natural, tempo suficiente para percorrer os 23 quilômetros finais até Cunha (SP), em trecho com predomínio - uns 90% talvez - de descensos.
A exceção fica por conta de uma subida contínua de três quilômetros na chegada à Cidade das Cerâmicas (Cunha - SP).
A média horária voltou a subir, a paisagem é belíssima, mas o calor, mesmo naquela altitude (1.540 m), não dava trégua.
Mas com o aumento da velocidade nas descidas, o calor foi arrefecido e ganhei ânimo para completar o trecho que faltava. Graças àquelas duas almas caridosas que me “rebocaram”, cheguei a Cunha (SP), são e salvo, apesar da sujeira.
Trecho entre Paraty (RJ) e Cunha
(SP). Foto: Fernando Mendes.
Às 19h 20 atravessei o portal a cidade e cheguei à Praça da Igreja Matriz (Rosário). Havia um palanque sendo montado na praça e o som estava sendo testado para a festa da virada do ano.
Enquanto fazia o check-in no Hotel Portal do Sol, tocava a música “Que nem Maré”, de Jorge Vercilo, canção na qual o autor diz que: “a saudade é que nem maré, quando vem, de repente, de tarde, invade e transborda esse bem me quer". "A saudade é que nem maré".
A cidade estava pouco movimentada naquele início da última noite do ano. Tomei banho e voltei à rua, agora para degustar uma deliciosa pizza. Somente eu no restaurante. O garçom falou que o movimento nas ruas aumentaria pouco depois das 22h.
Aos poucos praça em [9] Cunha (SP) estava lotada. Veio gente dos quatro pontos cardeais. Da janela do meu quarto no hotel assisti à queima de fogos, quando os ponteiros do relógio da Igreja Matriz se juntaram no 12.
Durou 20 minutos, o mesmo tempo da queima em Copacabana. Há um ano, eu estava em Pirassununga (SP), de bicicleta também, a caminho do Rio de Janeiro (RJ). Como passou rápido.
Consegui dormir depois das 3 da manhã, quando o som
foi desligado na praça e cada um foi para suas casas.
[9] - O povoamento das terras hoje pertencentes a Cunha (SP) teve início durante o ciclo do ouro, com a criação de várias fazendas ao longo da Trilha dos Guayanazes, ou o Caminho do Ouro, que ligava a região das minas ao porto de Paraty e ao Rio de Janeiro.
Presume-se
que o topônimo (origem do nome) seja derivado de uma das famílias, Cunha
Menezes, que aqui estiveram.
Nas atividades econômicas,
destaque para a agricultura, com o cultivo de milho, feijão, batata inglesa,
cana-de-açúcar; a agropecuária, com a produção de ovos, mel e leite; a
fruticultura de clima temperado e a piscicultura de trutas.
Para desenvolver o
artesanato (a cerâmica é o
forte do município), Cunha (SP) oferece a Casa do Artesão.
A cidade
tem 25 mil habitantes e 80% deles se concentram na área rural, garantindo a
comidinha caseira e os produtos naturalmente servidos à mesa.
Entre os melhores
restaurantes, garanta seu lugar à mesa do Quebra Cangalha, onde a comida tem
sabor da serra e o ambiente é aconchegante; o Recanto Uruguayo serve como pouso
aos turistas apreciar as guloseimas da Doceria da Cidinha, na praça da Matriz
Nossa Senhora do Rosário.
01/01/2003 |
||
5º
dia |
Cunha (SP) a Queluz (SP) |
46
km |
O céu cheio de Sol e sem nuvens, anunciava que, o primeiro dia do Ano da Graça de 2003, seria belíssimo e bastante quente.
Àquela hora - umas 9h talvez -, enquanto saboreava o café da manhã, a temperatura era alta. Ao pedalar rumo à saída da cidade, para alcançar a Rodovia SP - 171, passei por um relógio digital, próximo à Pousada Clima da Serra, que marcava 31°C. Canícula senegalesa.
Era dia da posse do presidente Lula em Brasília (DF), onde àquela hora, chovia a cântaros. Em Cunha (SP), assim como em toda a rota a ser seguida naquele Dia Mundial da Paz, o tempo estava esplêndido.
A cidade é circundada pela Serra do Mar e as araucárias são vistas por todos os lados. Atravessei o portal da cidade e voltei à rodovia SP-171, que me levou, por meio de fortes subidas e alucinantes descidas – intervaladas por belos vales floridos -, até Guaratinguetá (SP), no Vale do Paraíba, 46 quilômetros adiante.
SP - 171. Trecho
entre Cunha (SP) e Guaratinguetá (SP). Foto: Fernando Mendes.
Estrada muito ruim. Enormes remendos sobre asfalto gasto e acostamento com muita terra. Mas como o movimento era quase zero, pude pedalar tranquilamente, desfrutando de uma paisagem belíssima da Serra do Quebra Cangalha (subgrupo da Serra do Mar).
A serra e a Mata Atlântica se misturam às
araucárias e a pequenos cursos d’água que, ora margeiam a estrada, ora
cortam-na, sendo atravessados por pequenas pontes de concreto.
Às 13h 30 cheguei a Guaratinguetá (terra das garças brancas), abandonei a SP-171 e, pela alça de acesso, ingressei na Via Dutra.
A Rodovia Rio - São Paulo, diferentemente dos demais dias do ano, quando o movimento de veículos é frenético, estava silenciosa. Passavam poucos carros e caminhões. Observei, nos postos à beira da estrada, muitos veículos estacionados. Era pouco provável que, àquela hora, voltassem à estrada.
Via Dutra. Trecho entre Guaratinguetá
(SP) e Queluz (SP). Foto:
Fernando Mendes.
A transparência e luminosidade
daquele primeiro dia do ano, permitiram divisar, no través oeste, a Serra da
Mantiqueira, sem nuvens nos pontos mais altos – coisa rara, – proporcionando belo
contraste entre o granito de suas rochas e o azul do céu. No través leste, a
Serra do Mar descortinava espetáculo de igual monta.
Parei em uma churrascaria no km 62,5. Muitas pessoas se aglomeravam defronte a vários aparelhos de TV, presos às pilastras, no interior do estabelecimento.
Caso não estivesse atualizado com os fatos que iam pela Pátria, podia jurar que estávamos em dia de de jogo da Seleção Brasileira pela Copa do Mundo. Nada disso. Todos estavam atentos às imagens que mostravam a posse do presidente.
A festa pareceu-me bastante concorrida. Mais tarde, quando assisti ao JN, pude sentir o quanto a posse do Lula “mexeu” com o País.
De volta à estrada – eram 14h – pedalei forte por meio de longa reta e, um após outro, transpassei - pela ordem - os seguintes municípios: Lorena (SP), Canas (SP), Cachoeira Paulista (SP), sede do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Cruzeiro (SP), entrada para Silveiras (SP) - a cadeia dessa localidade foi projetada por Euclides da Cunha - e, a seguir, o majestoso trevo de Lavrinhas (SP), o mais belo da Via Dutra.
Naquele ponto, a parada no Trevo de Lavrinhas é obrigatória para fotos. Existe uma enorme ponte sobre o Rio Paraíba do Sul. Sempre que viajo de bicicleta pela Dutra, paro naquele trevo. É uma beleza de lugar.
Quando retornei à estrada, senti uns pingos. Seria chuva? Impossível! O céu estava azul e sem nuvens. Bem, quase sem nuvens.
Acima de mim, ou seja, na minha vertical, alguns Cb´s, densos e verticalizados e moviam-se - segundo minha leitura visual não muito precisa - a uns 2 mil metros de altura.
São acompanhados [os Cb] de ventos intensos, granizo, fenômenos elétricos e congelamento. Representam perigo maior à navegação aérea em relação às navegações terrestre e marítima.
Porém não podia ignorar os perigos desse tipo de formação sob minha cabeça e seus múltiplos fatores, principalmente a queda de raios e, secundariamente, precipitação de granizo.
E rapidamente um aguaceiro vertical desabou como se a tampa de uma caixa d´água gigante tivesse sido aberta sobre mim. Os pingos, à semelhança de bagos de uvas, eram grossos e multiplicavam-se à medida que trovoadas eram anunciadas por flashes (clarões) dos relâmpagos. Em poucos segundos, estava sob um temporal típico de final de tarde no verão.
Choveu forte por trinta minutos e me vi obrigado a parar porque o asfalto ficou escorregadio, não para a bicicleta, mas para os veículos que transitavam pela Dutra.
Era possível ver e, principalmente, sentir o cheiro do óleo que gruda no asfalto e, quando chove, se desprende, dando a impressão que o piso está ensaboado.
Parei no Posto Quatro Irmãos. Estava ensopado. Não tive coragem de adentrar ao estabelecimento. Pedi uma Coca-Cola do lado de fora. O atendente veio, me serviu e perguntou de onde eu estava vindo e aonde (o mesmo que para onde) eu estava indo.
Pergunta que se tornou rotina quando viajo de bicicleta. Depois da resposta, a cara de espanto. Estou acostumado ao semblante assustado dos meus interlocutores quando digo de onde venho e para onde vou. “Está pagando promessa?”, me perguntou.
Por que será que as pessoas associam promessa com autoflagelação? Pagar promessa é sinônimo de se autoflagelar? Viajar de bicicleta é autoflagelação? Não creio. Para mim, viajar de bicicleta [ou não] está entre as coisas que mais amo nesta existência. Acredito que vivi muitas vidas, das quais suspeito ter passado a maior parte delas viajando, de bicicleta ou não.
Eram 17h quando retomei à bike e à Dutra. O asfalto estava encharcado e não demorou a surgiu aquela névoa característica de superfícies aquecidas depois da chuva.
A drenagem da Dutra está muito boa. Nada de poças d´água que provocam aquaplanagem. O calor aumentou. Subia do asfalto um bafo quente e pesado, acompanhado de um agradável odor de terra molhada.
Às 17h 45 o Hotel Athenas foi avistado, à esquerda, na pista direção São Paulo, a pista Sul, km 8. Acomodação em um quarto virado para a estrada. No ano passado, quando fui de Brasília para o Rio [de bike], hospedei-me no Athenas.
Naquela viagem fiquei em um quarto do lado oposto à rodovia, defronte a um terreno baldio, na esperança de dormir sem o barulho da estrada. Ledo engano.
De madrugada, um galo sem noção começou uma cantoria com intervalos exatos de 30 segundos. Desta feita, preferi o barulho da estrada ao canto do galo.
No entanto, a noite foi muito mal dormida. Fez muito calor. O ar estava abafado e nem o ventilador do teto arrefeceu o ambiente.
Na hora do jantar assisti ao JN e vi os principais
momentos da posse do presidente [Lula]. Fui dormir por volta das 23h.
02/01/2003 |
||
6º
dia |
Queluz (SP) a Bananal (SP) |
90
km |
Atravessei a Dutra pela passarela de pedestres, peguei a pista direção Rio por alguns metros - uns 45 talvez - e logo virei à direita, ingressando na área central de Queluz (SP). Era o primeiro dia útil de 2003.
Como em quase todas as áreas urbanas do País, o trânsito é frenético e muitos condutores parecem acometidos de um mal que não tem vacina: pressa!
Queluz (SP), apesar dos diminutos 9.112 habitantes (IBGE 2000), não foge à regra.
Livrei-me daquele frenesi, atravessei a ponte sobre o Rio Paraíba do Sul e ingressei na rodovia SP- 68, a Estrada dos Tropeiros. [10]
[10] - A Estrada dos Tropeiros foi o caminho utilizado no
século XVII até parte do XIX, nas viagens dos tropeiros na região Sudeste e
Sul. Há várias Estradas dos Tropeiros no Brasil, mas a mais importante é a
atual SP-68, ligando Silveiras (SP) a Bananal (SP).
A mesma estrada serviu de base para a antiga Rio-São Paulo, que utilizou as trilhas como orientação do melhor caminho para chegar ao Vale do Paraíba. Foi pela Estrada dos Tropeiros (SP-68) que D. Pedro I passou na viagem entre Rio e São Paulo, no ano de 1822, quando o Brasil emancipou-se de Portugal (1822).
A história do Brasil, e
principalmente dos brasileiros, está presente em cada curva. No seu trajeto,
principalmente entre Silveiras (SP) e Bananal (SP), surgiram cidades que hoje
conservam sua majestade, nas construções históricas e atrações naturais. A
aparente decadência dessas cidades revela os ciclos da vida, e as cidades dos
Tropeiros, situadas estrategicamente, em média, a quatro léguas (24 km), e
estão ressurgindo por meio do ecoturismo, o tropeirismo contemporâneo.
A Estrada dos Tropeiros é o
Circuito das Cidades Históricas de São Paulo. Mesmo que as construções não
sejam tão importantes historicamente, o cenário que oferecem permite, sem
nenhuma dificuldade, uma superprodução cinematográfica, reconstituindo a
história do Tropeirismo. Como se não bastasse, a natureza é generosa na região,
tendo como destaque o Parque Nacional da Serra da Bocaina.
As árvores centenárias oferecem a
sombra do tempo, dos séculos e são silenciosas testemunhas de um passado que o
Brasil não pode esquecer.
Quem viaja pela Estrada dos
Tropeiros (SP – 068), decerto irá aumentar seu saldo de conhecimento sobre a
História do Brasil.
Na Serra da Bocaina, pode-se perceber que, no estresse da vida moderna, há pessoas que vivem em outro ritmo e refletir sobre a "pressa", palavra que passou a dominar o cotidiano de muitas pessoas.
Ao longo do século XIX, as cidades do Vale Histórico, representaram a porção mais rica e desenvolvida do Brasil.
[11] - Cone
Leste Paulista é uma expressão que ainda não consta nos livros didáticos de
Geografia.
Porém,
desde 1996, tem sido amplamente usada para se referir aos 43 municípios
localizados na Serra da Mantiqueira, Vale do Paraíba, Alto Paraíba, Litoral
Norte e Vale Histórico do Estado de São Paulo.
Vale Histórico 10 Municípios | 1. Cruzeiro |
2. Silveiras | |
3. São
José do Barreiro | |
4. Lavrinhas | |
5. Cunha | |
6. Areias | |
7. Arapeí | |
8. Queluz | |
9. Piquete | |
10. Bananal |
Mantiqueira 4 Municípios | 1. Campos do
Jordão |
2. São Bento
do Sapucaí | |
3. Santo Antônio do Pinhal | |
4. Monteiro
Lobato |
Litoral Norte São Paulo 4 Municípios | 1. Caraguatatuba |
2. São
Sebastião | |
3. Ubatuba | |
4. Ilhabela |
Alto Paraíba 12 Municípios |
1. Guararema |
2. Jambeiro |
|
3. Natividade da Serra |
|
4. Santa Branca |
|
5. São Luiz do Paraitinga |
|
6. Mogi das Cruzes |
|
7. Igaratá |
|
8. Lagoinha |
|
9. Paraibuna |
|
10. Santa Isabel |
|
11. Redenção da Serra |
|
12. Salesópolis |
Vale do Paraíba Paulista 13 Municípios | 1. São José dos Campos |
2. Caçapava | |
3. Pindamonhangaba | |
4. Jacareí | |
5.Taubaté | |
6.Tremembé | |
7. Guaratinguetá | |
8. Canas | |
9. Potim | |
10. Roseira | |
11. Cachoeira Paulista | |
12. Lorena | |
13. Aparecida |
De Queluz (SP) a Bananal (SP) pedalei por uma região belíssima. A serra da Bocaina, subgrupo da Serra do Mar, que domina a paisagem e a estrada (Rodovia dos Tropeiros SP-68).
Fortes subidas até Areias (SP), por onde passei às 11h 20. A partir desse ponto, vem um sobe e desce de 22 quilômetros até São José do Barreiro (SP), alcançada às 13h 10.
Cheguei à pequena Formoso (SP), distrito de São José do Barreiro, às 14h 15, uma cidade que, de tão pequena, não consta nos mapas rodoviários.
Vencidas as subidas e as descidas leves, passei por Arapeí (SP). Eram 16h. Comi uns pastéis de queijo deliciosos. O cheiro estava no ar e me guiou ao bar no qual estavam sendo servidos.
Os 18 quilômetros finais foram percorridos em 1 hora. Cheguei a Bananal (SP), fechando o circuito das cidades históricas de SP, às 17 h.
Encontrei o Hotel Brasil, reservado com dias de antecedência e localizado em frente à praça principal de Bananal, fechado. Uma briga de família acabou cerrando as portas da mais antiga hospedaria da cidade. Acomodei-me, então, na Pousada DK, inaugurada recentemente e localizada na Rua da Pharmácia Popular.
Tomei banho, fiz os exercícios de alongamento e malhei lavando a roupa utilizada, aproveitando a lavanderia da pousada. Não sei quando teria outra à disposição. Terminada as obrigações, saí para uma volta pela cidade.
Em Bananal (SP) existe aquele ar de cidade pequena na qual a vida decorre monótona e placidamente durante a semana. Nos finais de semana, feriados prolongados e férias escolares, a cidade é "invadida" por uma horda de amantes de esportes radicais [ou não].
A monotonia e a placidez transformam o lugar, no
qual turistas bebericam as belezas naturais e arquitetônicas. Os casarões dos
falecidos barões do café podem ser vistos pelas ruas. Bananal (SP) [12] foi a cidade que financiou o
Brasil.
[12] - A origem de Bananal está ligada à
construção de uma alternativa na época que permitisse viajar entre Rio de
Janeiro e São Paulo, sem enfrentar a difícil viagem por mar, a partir de Parati
(RJ).
. Com o ciclo do café, Bananal (SP) tornou-se uma
potência econômica da época, a ponto de, no Brasil Império, ter sido necessário
o aval de fazendeiros da região, para que o Banco Rotschild (família judia, com origem em Hamburgo, Alemanha,
que estabeleceu uma dinastia bancária na Europa) emprestasse
dinheiro ao Brasil.
Durante
sua época áurea, Bananal (SP) assistiu à construção de inúmeras casas e
fazendas, cuja opulência e refinamento confirmam o poderio econômico dos barões
do café.
Em 1832 passou a ser cidade. O nome, segundo
alguns, provém da expressão indígena banani, que significaria sinuoso.
A riqueza da cidade era tanta que, durante bom
tempo, teve moeda própria, financiou a construção de uma ferrovia, importou uma
estação ferroviária [completa] da Bélgica, exemplar único na América Latina.
Ao final do século XIX, com fim da
escravidão, os sinais de cansaço da terra eram evidentes. Novas estradas de
ferro foram encerrando o ciclo de desenvolvimento de Bananal (SP). Com a
inauguração da Via Dutra (1951), a cidade ficou fora do circuito Rio- São
Paulo. Foi relegada ao esquecimento.
Devido ao seu potencial
histórico, seu rico artesanato e grande número de atrações turísticas, Bananal
(SP) começou a dar sinais de recuperação.
Hoje é um polo turístico em pleno
desenvolvimento. Situada a apenas duas horas do Rio de Janeiro e 4h de São
Paulo, a cidade possui atrações naturais e culturais que lhe garantem um futuro
brilhante.
Além da Estação
Ferroviária e das Fazendas Resgate e Boa Esperança, absolutamente imperdíveis,
o visitante fica deslumbrado com a riqueza dos sobrados da Rua Manoel Aguiar,
as inúmeras construções históricas espalhadas pela cidade.
A Igreja Matriz, Senhor Bom Jesus do Livramento,
motivo de orgulho de seus mais de 15.000 habitantes, foi construída em 1811, em
estilo colonial.
A riqueza da cidade
era tanta que até uma farmácia ganhou dimensões históricas, como é o caso da
Pharmácia Popular, que funciona desde 1830.
Surgiu inicialmente como Pharmácia Imperial,
mas com a República, ouviu os conselhos e mudou de nome. É a mais antiga do
País em funcionamento, com peças únicas do século XIX.
Disponível
em:<http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2004/trabalhos/epg/pdf/EPG6-3.pdf>.
Acesso: 30/01/2003.
Bananal (SP). Pharmácia Popular. Foto: Fernando Mendes.
A Estação Ferroviária de Bananal, importada da Bélgica em modelo pré-fabricado em placas de aço, foi inaugurada em 1889, sendo um dos acervos mais valiosos do Estado.
A Estrada de Ferro Bananal começou a ser construída em 1882, e a linha, partindo da estação de Saudade, em Barra Mansa (RJ), no ramal de São Paulo, chegou a Rialto, ainda na Província do Rio de Janeiro, em 1883. Somente no Natal de 1888 alcançou Bananal (SP).
A União encampou a ferrovia em 1918. Por um curto período. Em 1931, esteve subordinada à E. F. Oeste de Minas, mas voltou a ser da Central do Brasil. O ramal foi finalmente desativado em 01/06/1964.
No país de alma rodoviária, a era romântica das ferrovias teve vida curta. Ao conhecer a Estação Ferroviária de Bananal foi possível sentir a nostalgia que está presente entre os habitantes mais idosos.
Este sentimento aumentou, ainda mais, quando a antiga Estação Ferroviária virou estação rodoviária. A economia do Brasil foi sobre trilhos; hoje é sobre rodas.
Ao lado da Estação está estacionada – para sempre –
a Locomotiva 302. [13]
[13] - A desativação da estrada de ferro paralisou o vai e vem da 302 que, por décadas, ligou Bananal (SP) a Barra Mansa (RJ).
(Nota
do Autor).
Ignácio Loyola Brandão, à página 57, na obra Dutra
50 Anos, quatro séculos em cinco horas, publicado pela Editora paulista DBA (Dorea
Books and Art – SP) e com apoio do Ministério da Cultura, em em
homenagem aos 50 anos da mais famosa e importante estrada do País, escreveu:
"na altura de Barra Mansa, pode-se tomar a estrada (RJ-157/SP-68) que
passa por Bananal. Monteiro Lobato chamou-a de "cidade morta".
Povoação [Bananal] que, depois do fausto [do café], estagnou e retrocedeu. A população diminuiu. Bananal nas épocas áureas chegou a ter 25 mil habitantes. Hoje, não passa de 9 mil".
Em 1822, a caminho de
São Paulo, D. Pedro I pernoitou na cidade. Por ela passaram, também, os
naturalistas Spix, Martius, Debret e Saint-Hilaire.
Bananal (SP).
Fazenda Boa Vista. Foto: Fernando Mendes.
Ficava em Bananal (SP) a maior fazenda do Império, a Boa Vista, com 2.400 escravos. Hoje é hotel-fazenda.
As casas de fazenda ostentavam afrescos de pintores europeus, e plantadores contratavam professores particulares de música, latim, francês, alemão, até inglês.
O lustre do palacete de D. Domiciniana Vallim media 1,80 metros de diâmetro. As maçanetas de quase todas as casas eram de cristal.
O Visconde de São Laurindo possuía um aparelho de jantar de duzentas peças, com suas iniciais gravadas em ouro.
As grandes famílias moravam nas fazendas, mas cada uma possuía um imenso sobrado na cidade. No teatro Santa Cecília, decorado pelo pintor Villarionga – autor de incontáveis afrescos pelas mansões -, era proibido vaiar e jogar coisas no palco, excetuadas flores e grinaldas, em forma de aplausos.
Durante o Segundo Reinado (1840 a 1889), a cidade teve dezenove jornais. Franceses abriram a padaria mais moderna do Vale do Paraíba, a À La Gerbe d´Or, que oferecia pães de viagem recheados com paio, linguiça, frango e pombo.
No Rio de Janeiro, as mulheres de Bananal compravam seda pura da China, seda lavrada, brocados, tafetás, linho belga. Nas festas, cabeleireiros vinham da Corte, pagos a peso de ouro.
O Bazar Bananalense mantinha um estoque de Champanhe Clicquot, vinhos do Porto e de Bordeaux, Genebra Holandesa, Cerveja Basse, peito de peru (uma novidade), camarões, salmão, lagosta, patês, salame de Lyon, queijo do Reino, mostarda francesa.
Toda casa tinha sua cozinha, sua doceira, sua especialista em pães e broas, roscas e biscoitos, sequilhos. A mãe-benta de Bananal ainda é um quitute dos mais apreciados. Era a aristocracia rural em seu clímax. Nos anos de 1864-5, a renda de Bananal superou até mesmo a renda da capital da província.
No entanto, outras regiões passaram a plantar café de excelente qualidade. As terras do Vale cansaram, viram-se sujeitas a erosão e pragas.
Com a abolição da escravatura (1888), os senhores de café ficaram sem mão de obra.
Não tinham se preparado, não tinham contratado nem tinham como contratar colonos. Foram perdendo terras, abandonando fazendas. Fortunas se dissolveram. Sensível melhora aconteceu quando a estrada velha do Rio a São Paulo passou pela cidade.
O comércio se intensificou um pouco e o movimento
de veículos cresceu. Mas por pouco tempo. A Dutra, inaugurada em 1951, passa longe de Bananal (SP), que se esvaziou, caiu no silêncio. Hoje, tenta sobreviver
com o turismo interno. O crochê de barbante é uma especialidade local.
Bananal é a imagem
da vida que se foi.
Da glória, dinheiro
e poder.
(Nota do Autor).
03/01/2003 | ||
7º
dia | Bananal (SP) a Quatis (RJ) | 52
km |
Deixei a cidade da opulência [de outrora] às 10h e iniciei a jornada daquele dia 3 de janeiro. O tempo estava ótimo, com Sol forte e muito calor.
Fui pedalando de leve pelas ruas de paralelepípedos até alcançar a SP-64, Rodovia Álvaro Brasil Filho, que liga Bananal (SP) à divisa com o Estado do Rio. Foram 16 quilômetros até a Divisa.
A partir daquele ponto, ingressei em terras fluminenses. Até Barra Mansa (RJ) percorri, placidamente, 10 quilômetros pela RJ-157, a Rodovia Engenheiro Alexandre Drable [14].
[14] - Amyr Klink, em seu livro, Mar Sem Fim, uma viagem de 360º ao redor da Antártida, à página 123, faz o seguinte comentário, que considero bastante pertinente: “vício incurável esse, o de dar nome de pessoas, mortas [ou não], às coisas públicas, e, pior ainda, de mudar nomes às vezes naturais e espontâneos de obras, vias ou lugares. Assim, a estrada caminho do ouro (SP-171) para descer até Paraty (RJ), ganhou o nome estapafúrdio de Estrada Vice-Prefeito Salvador não-sei-o-quê”. "A SP-64 chama-se Rodovia Álvaro Brasil Filho, a RJ-157 chama-se Rodovia Engenheiro Alexandre Drable. Pelo Brasil afora, são inúmeros os exemplos de duplo desrespeito, ao se tirar o nome genuíno dos lugares e o de roubar o nome do defunto, quase sempre sem seu consentimento".
Às 13h 23 o asfalto escuro da estrada deu lugar a um piso claro, semelhante a cimento. Essa mudança marca a divisa SP/RJ, ponto em que a SP-64 passa a ser a RJ-157.
Mais 10 quilômetros e cheguei a Barra Mansa (RJ), entrando na cidade por um bairro muito pobre, com casas inacabadas, muitas roupas nos varais e parabólicas por todos os lados.
Ao terminar a travessia desse bairro, feita por uma rua estreita e cheia de lombadas, veio uma descida forte, que termina na alça de acesso à Via Dutra. Tomei a direção de São Paulo. Eram 14h.
Diferentemente do 1º dia do ano, quando pedalei pela Dutra, no trecho Guaratinguetá-Queluz e o movimento era muito pequeno, naquele dia 3 de janeiro, uma sexta-feira, a Dutra estava movimentadíssima – como sempre – e entrei, rapidamente, na estrada, em meio àquele frenesi de veículos de variados os tamanhos.
Pedalei, sem trégua, por 20 quilômetros até a saída 290, acesso à pequena Quatis (RJ). Abandonei a estrada pela saída lateral à direita e ingressei na RJ-159, recém-asfaltada, que me levou a Porto Real (RJ).
Atravessei uma ponte sobre o Rio Paraíba do Sul. A seguir, começa a RJ-143, que me conduziu à pacata [15] Quatis (RJ), tão desconhecida quanto Marte.
Foto: Fernando Mendes.
Ameaçava chuva quando cheguei à Pousada Pôr do Sol.
Foi o tempo de me acomodar no quarto e um temporal desabou sobre a região. Eram
15h 30. Parou de chover às 18h. Fiquei no quarto a ler.
Todo o segundo e quarto domingos de cada mês, a cidade se torna
pequena para receber trabalhadores rurais e artesãos que chegam para participar
da Feira da Roça. Esta festa é comandada por uma associação criada há 10 anos e
que estabelece as normas a serem seguidas por seus associados. Nessa feira, os
turistas e moradores encontram produtos da roça, artesanato, cachaça produzida
na região, mel, biscoitos, plantas medicinais, comida típica e forró.
A região onde se situa Quatis demorou a ser desbravada
em razão da barreira geográfica de serra do Mar. Em 1724, foi iniciada a
escalada da Serra por ordem do Governador Geral Luiz Monteiro (governou
de 10/05/1725 a 22/04/1732), com a finalidade de abrir
um caminho mais curto para São Paulo, sem os inconvenientes da travessia
marítima até Paraty.
Quatis passou a ser o caminho
natural dos Bandeirantes, tropeiros e boiadeiros, além daqueles que recebiam
concessões de sesmarias por volta de 1764/65, e se encaminhavam para as atuais
cidades de Volta Redonda (RJ) e Barra Mansa (RJ). Com o declínio da procura do
ouro em Minas Gerais e o desenvolvimento da cultura do café no final
do século XVIII, foram concedidas muitas sesmarias a futuros cafeicultores. Em
1820, houve notícia de duas importantes fazendas em Quatis: a Fazenda do Cedro
do Comendador Bernardo José Ferraz e a Fazenda Nossa Senhora do Rosário dos
Quatis de Antônio Marcondes do Amaral.
O local no qual se situa Quatis começou quando o fazendeiro
Faustino Pinheiro e sua mulher Gertrudes Maria de Jesus, fizeram uma doação, em
5 de Março de 1832, para construção de uma igreja e de um pequeno povoado. Até
1844, Quatis pertenceu ao Município de Resende, quando foi desmembrada e
incorporada ao Município de Barra Mansa.
Com a inauguração
da Estação Ferroviária, em 1897, e com a conclusão do trecho que a incorporava
à Estrada de Ferro Oeste de Minas, muitos colonos e fazendeiros afluíram para
adquirir terras ou trabalhar em fazendas de café.
Muitas fazendas passaram, com o tempo, a se ocupar da pecuária. O Colégio Ateneu Quatiense foi fundado em 1897 e, no mesmo ano, em 19 de março, o sistema de luz elétrica foi instalado na cidade, atraindo melhoramentos. Quatis foi emancipada em 11 de dezembro de 1990.
Quando a chuva passou, saí para o reconhecimento do lugar. Nada dos tempos áureos dos ciclos do ouro e do café ficou preservado.
Quatis (RJ) é uma cidade recôndita (desconhecida) e que teve importância crucial na antiga rota do ouro. Era parada obrigatória, antes de começar a descida da Serra do Mar, para os comboios que vinham de Ouro Preto (MG) e iam até Paraty (RJ).
A Matriz de Nossa Senhora do Rosário, construída em 1832 e, originalmente pintada de azul e branco, teve a fachada alterada para amarelo quase gema de ovo.
Voltei logo para a pousada e terminei ler o livro
de contos do José Saramago. Dormi cedo e não vi graça nenhuma em Quatis (RJ).
04/01/2003 | ||
8º
dia | Quatis (RJ) a Conservatória (RJ) | 54
km |
Às 13h estava a atravessar a praça principal e, em seguida, a transpassar a linha férrea da MRS Logística. Logo, estava a girar sobre estrada em leito natural, a RJ - 143, que liga Quatis (RJ) a Conservatória (RJ).
Ao planejar a viagem, optei por seguir pela RJ-143, mesmo sendo de terra, evitando, dessa maneira, pedalar por rodovias muito movimentadas, principalmente a BR-393, que tem trânsito confuso na travessia de Volta Redonda (RJ) e falta de acostamento em alguns trechos. A RJ-143 foi a melhor opção.
Atravessa uma região – a serra do Amparo – muito bonita, cheia de fazendas e belas formações rochosas. O movimento de veículos foi quase nenhum naquele sábado. Pude seguir em meio ao silêncio, quebrado pelas maritacas que voavam em bando, fazendo a maior fuzarca.
Trecho entre Quatis
(RJ) e Conservatória (RJ). Foto: Fernando Mendes.
Trecho entre
Quatis (RJ) e Conservatória (RJ). Foto: Fernando Mendes.
Na saída de Quatis (RJ) passei sob a magnífica ponte ferroviária da MRS Logística, que corta um vale muito bonito e largo. A extensão da ponte deve ser de pouco mais de um quilômetro e com altura de uns 50 metros. É belíssima. No meio do nada, surge uma espetacular obra da engenharia ferroviária.
Passada a ponte ferroviária, veio um trecho muito acidentado, com subidas e descidas alternadas e íngremes.
O piso da estrada estava muito castigado pelas últimas chuvas e, em algumas subidas, foram colocadas pedras, semienterradas, para que os veículos tenham tração nos aclives.
Com a bicicleta não encontrei maiores dificuldades para subir. Logo veio a cidade de Nossa Senhora do Amparo, distrito do Município de Barra Mansa (RJ), que cresceu dentro de um vale, o Vale do Rio Turvo.
É uma bela localidade, com calçamento em pedras sextavadas, belas casas, comércio variado e muita gente pelas ruas. Amparo é muito mais bonita que Quatis (RJ).
Eram 14h 05 quando parei para tomar água. Percebi que o pneu traseiro estava baixo. Quando iniciei a jornada daquele dia, em Quatis (RJ), estava com a calibragem correta. Teria furado? Continuei, após enchê-lo com a bomba que trago à cautela.
Quando cheguei ao final da rua principal, o calçamento deu lugar à estrada em leito natural. Estava de volta à RJ-143. A próxima cidade foi São José do Turvo (RJ), distrito de Barra do Piraí (RJ), 14 quilômetros à frente de Amparo.
Levei quase duas horas para percorrer esse trecho, mais acidentado do que o anterior e o pneu traseiro, a cada 10 minutos, precisava de mais ar. E tome bombadas.
Acreditei que em São José do Turvo (RJ) encontraria um posto para calibrá-lo. Quebrei a cara. A cidade é minúscula e não tem postos de combustíveis. O jeito foi continuar pedalando e parando, a cada 10 minutos, para novas bombadas. Decidi que trocaria a câmara de ar na estrada apenas se o pneu baixasse por completo.
Deixei a pequena São José do Turvo (RJ) às 16h, mas não sem antes degustar uns deliciosos pastéis de queijo no único empório do lugar.
Conservatória (RJ) estava próxima. Faltavam apenas 14 quilômetros, os mais penosos daquele dia. O piso da estrada piorou consideravelmente. Muitas ravinas e sulcos, abertos pelo escoamento superficial das águas das chuvas, dificultavam a manutenção da média horária conseguida até ali.
O intervalo para bombear ar para o pneu caiu para 5 minutos e o calor era abrasador. Sensação de ser um frango dentro de um forno elétrico. Nenhuma cachoeira ou rio à vista.
O jeito foi encarar as subidas com aquele piso pior a cada metro. Parei na porteira de uma fazenda. Pensei em substituir a câmara de ar que, não havia mais dúvida alguma, estava furada, mas devia ser um furo pequeno, porque o pneu murchava vagarosamente.
Desisti quando, pela marcação do Cateye, constatei que faltavam apenas 8 quilômetros para Conservatória (RJ). Veio uma subida insana de 5 quilômetros e, após, uma descida curta e as primeiras casas da cidade começaram a aparecer, em ambos os lados da estrada.
Entrei em Conservatória (RJ) empurrando a bicicleta. Eram 18h. O Sol estava alto. Horário de Verão – para mim – tem vantagem quando estou de férias e viajando de bicicleta.
A Pousada Angélica, para minha sorte, fica ao lado do único posto de combustíveis de Conservatória (RJ). Deixei meus haveres no quarto e fui trocar a câmara de ar, substituindo-a por uma [ainda] sem uso.
Quanto ao remendo na câmara furada, deixei para fazê-lo no dia seguinte. Estava na hora de um banho, sair para jantar e conhecer a vida noturna de Conservatória (RJ), a terra mundial da seresta.
Conservatória (RJ).
Foto: Fernando Mendes.
Enquanto jantava, observei através da janela do Restaurante Boemia, os seresteiros em reunião, a céu aberto, para definir qual o trajeto a ser seguido naquela noite de sábado.
A cidade fervilhava de gente. Turistas do Estado e da vizinhança saem pelas ruas acompanhando “os velhinhos dos violões”. Esse ritual não acontece nos dias de chuva. Sem chuva, tem público garantido.
Jantei, assisti ao cerimonial e voltei à pousada. De madrugada, acordei com o barulho da chuva, que caía com força. “Tomara que não tenha estragado o tour dos violeiros”, pensei.
No dia seguinte, domingo, dia 5 de janeiro, após o café da manhã, montei na bicicleta e rumei em direção à Serra da Beleza [16]. Objetivo: conhecer a Ponte dos Arcos [17], antigo leito da EFOM (Estrada de Ferro Oeste de Minas).
[16] - Serra de relevo típico, de cumes com
formas arredondadas. Suas encostas apresentam trechos em mata virgem, de médio
e alto portes, capoeirões e vegetação rasteira. O trecho mais elevado da
RJ-137, o Mirante da Serra, é o melhor local para se apreciar a paisagem que
circunda a região, um infindável "mar de morros", avistando-se desde
o Pico do Cavalo Ruço, até a torre da Igreja Matriz de Santa Rita de Jacutinga
(MG), além de uma visão total do Vale do Rio Preto.
Foram cinco
quilômetros de subida com inclinação moderada em estrada de terra em ótimo
estado.
[17] - A Ponte dos Arcos - um dos pontos turísticos da cidade - é uma construção feita pelos escravos entre os anos de 1880 e 1883. É elevada em cantaria, óleo de baleia, chumbo fundido, areia, ferro e pedras. O óleo de baleia tinha como finalidade dar liga às pedras, já que naquele tempo não existia o cimento. A ponte foi construída para dar passagem à antiga estrada de ferro, sendo desativada em 1961, no governo Jânio Quadros. Mede 55 metros de comprimento, 12 metros de altura e 4 metros de largura.
Tirei algumas fotos sob e sobre a ponte. Do alto dessa maravilha da engenharia do século XIX, uma visão completa da Serra da Beleza e do Vale do Rio Preto.
Serra da Beleza. Foto: Fernando
Mendes.
Serra da Beleza. Foto: Fernando
Mendes.
05/01/2003 | ||
9º
dia | Conservatória (RJ) a Rio das Flores (RJ) | 69
km |
Terminado o passeio para conhecer a Ponte dos Arcos, desci a serra, voltei a Conservatória (RJ), passei pela Pousada Angélica, arrumei meus haveres e parti na direção de Rio das Flores (RJ), 69 quilômetros à frente, dos quais 25 [quilômetros] sobre leito natural.
Ponte dos Arcos
Conservatória (RJ). Fotos: Fernando Mendes
Mas antes de pôr o pedal na estrada, passei no Lava a Jato do Bacana para limpar a bicicleta. Estava com muito barro acumulado no quadro, nas rodas e nos pedais.
Embora os fabricantes e mecânicos condenem a prática de lavar a bike com fortes jatos de água, ignorei tal instrução e pedi ao Bacana que caprichasse, principalmente nas 7 catracas e 3 coroas (7 X 3 = 21 marchas).
Depois do banho, lubrifiquei a corrente e saí para a última volta pela cidade. Fui conhecer a Locomotiva 206, da velha estrada de ferro, cartão postal de Conservatória. [18]
[18] - Conservatória - a "Capital Mundial da Seresta".
Várias novelas de televisão foram gravadas em Conservatória: O Feijão e o Sonho, Escrava Isaura, Sinhá Moça, uma pequena parte de Cambalacho, Salomé e A Viagem.
A primeira iluminação pública de Conservatória foi a querosene [1885] e perdurou até 1918, quando chegou a iluminação elétrica.
A construção das casas obedece ao padrão tradicional arquitetônico do século XIX. Nenhuma casa pode ser construída ou demolida sem a autorização da Prefeitura.
Mas é na base da alegria e das serestas que Conservatória é hoje a mais famosa cidade do País, quando se fala em "poesia cantada".
As casas em Conservatória são encontradas pelos carteiros não pelo número, mas por uma plaqueta com o nome de uma música. Quase todas são assim. Rua das Flores, na casa Chão de Estrelas ou na casa Luar de Paquetá, Saudosa Maloca, Maringá, Iracema, etc.
Se visitada de segunda a quinta-feira, Conservatória não despertará tanta atenção. Ela cochila esperando o entardecer da sexta-feira, fazendo-se confundir com um vilarejo comum, desses tantos que existem perdidos no interior.
Porém, quando chega a sexta-feira, as coisas se modificam porque Conservatória recebe centenas de visitantes que saem dali extasiados com tanta arte, poesia, dedicação e amor.
A população local - simpática e tranquila - passa à condição de minoria, pois os turistas estão em todos os lugares: nas lojas, nas calçadas, na igreja, enquanto os mais aventureiros partem para caminhadas, escaladas, banhos de cachoeira.
Impossível numa ida a Conservatória (RJ) e não conhecer/atravessar o Túnel que Chora, construído (ou furado) por escravos no século XIX. No interior da galeria, mina água em profusão das rochas no interior da galeria.
Era, até fins do século XIX, o único acesso a Conservatória (RJ).
Conservatória (RJ). Túnel que chora. Foto: Fernando Mendes.
Fui à antiga Estação Ferroviária, de onde a Locomotiva 206 partiu e chegou por meio século.
Hoje descansa na praça principal e representa o maior símbolo de Conservatória (RJ) das épocas áureas do café.
Quando subi na Ponte dos Arcos, antigo leito ferroviário e onde o apito da 206 varava o ar, avisando da sua chegada ou da sua partida, foi possível imaginar a cena: a Maria Fumaça nº 206 apitando, fumegando e pedindo passagem.
Na memória dos mais velhos, que viveram a época romântica dos trens, o apito [da 206] ainda ecoa pela cidade. [19]. A Locomotiva é a lembrança daqueles tempos.
[19] - Nasci na Filadélfia-EUA, no ano de 1910, graças ao grande inventor inglês Jorge Stepheson. De pedaços em pedaços, com muitos parafusos, arrebites e soldas eu fui construída. Meço 6m de comprimento, 3,15m de altura e 2,86m de largura.
Em 1960, o então Presidente
da República, Jânio Quadros, teve a infeliz ideia de desativar quase todos
os ramais ferroviários que não davam lucro (que pobre visão de um Presidente da
República). Lucro para quem? Para ser desviado para outros meios de transportes,
para favorecer os magnatas dos transportes rodoviários? Para ser dilapidado
pelos corruptos do serviço público?
Um serviço ferroviário é
implantado não para dar lucro, mas para servir ao povo que necessita de meios
de transporte econômicos e eficientes.
Mas como lei é lei, a Estrada de
Ferro RMV foi desativada em 1961.
Muito tempo se
passou e eu fui parar na Oficina da RMV de Barra Mansa, totalmente abandonada,
esperando o maçarico me cortar toda em pedaços para ser vendida como
"ferro velho". Triste fim me esperava.
Pela RJ-143, que liga Conservatória (RJ) a Valença (RJ), através da serra do Amparo, deixei aquela simpática e pacata cidade para trás.
O tempo estava abafado e ameaçava chuva. Até alcançar Valença (RJ), onde recomeça o asfalto, foram 25 quilômetros acidentados e entrecortados por vales, com gado mastigando capim sobre um tapete verde. Silêncio no ar. Poucos carros passaram por mim.
Parei para tomar água em uma birosca à beira da estrada. Uma senhora me atendeu. Trazia um papagaio no ombro esquerdo. Quando me aproximei dela, ele deu um salto e pulou em cima do meu capacete. Como ciclistas de capacete por aquelas bandas são raros, a ave deve ter estranhado o objeto e começou a bicá-lo. Como a superfície do protetor de cabeça é lisa, o bicho escorregou e estatelou-se no chão, apesar do esforço – em vão – de bater as asas. Peguei-o e ele não me estranhou.
Quando tirei o capacete e coloquei-o em cima do balcão, novas bicadas. Tirei foto do papagaio. Ele estranhou o flash e disse alguma coisa que não entendi ou fingi que não entendi. Segui em frente. Faltava pouco para o asfalto. Logo o trevo de Valença (RJ) apareceu e a RJ-143 deu lugar a RJ-125, asfaltada e muito movimentada na direção de Valença (RJ).
O ar abafado e as nuvens cinzas anunciavam um aguaceiro para breve. Mais 16 quilômetros em trecho plano e cheguei à pequena Taboas (RJ). A cidade estava em festa. Vários templos evangélicos espalhados pelo perímetro urbano concentravam muitos fiéis.
Havia uma animada quermesse e não parava de chegar gente. Em certo trecho foi preciso descer da bicicleta e empurrá-la em meio àquele maremagnun (mar de gente).
Mais seis quilômetros e cheguei à pacata Rio das Flores (RJ) que, no século XVIII, era o “trampolim” de acesso às minas da Capitania de Minas Gerais.
Nos tempos da ferrovia, havia um ramal de EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), parada obrigatória para os trens que seguiam do Rio a Juiz de Fora (MG). O ciclo do ouro acabou, o ramal da Central do Brasil foi desativado e Rio das Flores [20] - parece esquecida no tempo, onde tudo parece transcorrer como sempre: sem transcorrer.
É uma cidade bucólica, com população estimada em 66.290.000 habitantes - IBGE 2000. Feriados nos dias 15/8 (Feriado Religioso) e 29/10 (Fundação da Cidade). Fica a 159 quilômetros do Rio de Janeiro.
[20] - Os primórdios devassamentos
do território do município de Rio das Flores não estão até hoje bem
esclarecidos.
Autores atribuem o seu devassamento às correntes de faiscadores, aventureiros e bandeirantes, que desde o início do século XVI, utilizavam o curso do Rio Paraíba, como ponto de referência para atingir as "Minas Gerais".
Hospedagem na única pousada, a Rio das Flores, localizada no ponto mais alto da cidade. O acesso é feito por uma ladeira calçada com paralelepípedos e inclinação deveras cascuda.
São vários chalés e eu fui o único hóspede daquela
noite de domingo, dia 5 de janeiro. Eram 18h quando cheguei à recepção para
efetuar o check-in. Os sinos da igreja choravam no ar a hora do
Ângelus.
A
Pousada [Rio das Flores] é administrada por uma senhora, filha e genro. Mas a
mascote da hospedaria é a pequena Laura, menina muito esperta, neta da
proprietária e muita dada com as pessoas. Não era para menos. Por ali passa muita gente e a garotinha está acostumada ao movimento. Fala com desembaraço
e, enquanto o chalé era providenciado, contou-me quase três anos da sua
história.
A
cidade é muito silenciosa. Havia pouca gente nas ruas, quando saí para degustar
deliciosa pizza preparada em forno à lenha.
Ao
retornar à pousada, o tempo abriu e a Lua Nova, quase atingindo o quarto
crescente, apareceu entre as nuvens.
O
céu foi ficando estrelado à medida que o tempo limpava. Fiquei do lado de fora
do quarto contemplando aquele espetáculo, que permitiu divisar o
firmamento negro, brilhante e com hieróglifos de estralas, que brigavam umas
com as outras para brilhar mais do que a sua vizinha.
O
silêncio era um bálsamo para os ouvidos. Dez badaladas do sino da Igreja
de Santa Teresa d'Ávila se fizeram ouvir às 22h. Fui dormir
repassando cada trecho pedalado.
06/01/2003 | ||
10º
dia | Rio das Flores (RJ) a Três Rios (RJ) | 77
km |
Quando
acordei, chovia muito. Eram 10h. Havia dormido 12 horas seguidas. Fazia tempo
que não dormia tanto. Dei um pulo da cama e apressei-me para o café da manhã,
que estava para se encerrar.
O
aguaceiro apertou e a vontade que tive foi de continuar deitado e passar aquele
dia, 6 de janeiro, Dia de Reis, deitado, vendo a chuva lá fora e descansando.
Mas no roteiro não estava previsto nenhum dia de descanso. Prevaleceu a
disciplina. Três Rios (RJ) era a minha próxima parada. Estava atrasado.
Raspei-me dali sob chuva pesada.
Antes
de pegar a estrada, passei em um borracheiro para remendar a câmara de ar que
furou antes de chegar a Conservatória (RJ).
A
borracharia fica em um barraco de madeiras ao lado de uma loja de materiais de
construção. Ao entrar, vi um camarada deitado sobre vários pneus velhos
assistindo, pachorrentamente, ao seriado Chaves. “Desculpe atrapalhar o seu
descanso, mas tenho uma câmara de ar a ser remendada”. “Estou seguindo
viagem e não posso ir sem estepe”. " O senhor pode, por favor,
providenciar o reparo"?
Prontamente
fui atendido, embora a prensa estivesse fria e levou bem uns dez minutos para
esquentar, mais uns quinze para concluir o serviço.
Às
13h o serviço de remendo foi concluído. Tomei a direção da saída, cruzei a
ponte sobre o Rio das Flores e ingressei na RJ-145, com destino a Três Rios
(RJ), 77 quilômetros à frente. Chovia copiosamente.
A
estrada tem muitos buracos e como estavam cheios pelas águas das chuvas, podiam
se tornar uma armadilha. Pedalei 10 quilômetros até Manoel Duarte (RJ), situada
na margem direita do Rio Preto, divisor natural dos Estados do Rio de Janeiro e
de Minas Gerais.
A
partir dali a qualidade do piso melhorou muito e os buracos
desapareceram.
Afonso Arinos (RJ).
Foto: Fernando Mendes.
Segui
por um trecho plano e longo [da RJ - 145], margeado pelo Rio Preto, com Minas
Gerais vista na margem oposta [à esquerda].
Após
encerrar 28 quilômetros [non stop], percorridos em uma hora (recorde
para o dia), cheguei a Afonso Arinos (RJ), distrito
do município de Comendador Levy Gasparian (RJ).
Dois
quilômetros adiante - a chuva persistia, todavia menos enfurecida - alcancei
Monte Serrat (RJ), outro distrito de Comendador
Levy Gasparian (RJ), atravessado pela BR - 040 - a antiga BR -
3, que liga o Rio de Janeiro (RJ) a Juiz de Fora (MG), a Belo Horizonte
(MG) e a Brasília (DF).
Mas no século XIX era bem diferente. O trecho de
Petrópolis (RJ) a Juiz de Fora (MG) recebeu a primeira rodovia macadamizada [21] da América Latina, inaugurada em 23 de
junho de 1861, contando com a presença de S.M.I o Senhor D. Pedro
II, alcunhado o Magnânimo.
Na
viagem inaugural, o monarca percorreu a estrada no trecho Petrópolis (RJ) a
Juiz de Fora (MG),a bordo da diligência Mazzepa.
[21] - Tipo de pavimento para estradas
desenvolvido pelo engenheiro escocês John
Loudon McAdam, circa 1820.
Disponível
em:<https://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20050719-rota040-02.shtml>.
Acesso: 31/01/2003.
A
ponte sobre o Rio Paraibuna [22] - [23],
que assinala a divisa entre os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, veio a
substituir a antiga [ponte], queimada em 1842.
[22] - Nos tempos do Ciclo do Ouro (1697 - 1810), a
travessia do Rio Paraibuna era feita um pouco mais rio acima (a montante) de
onde hoje está a ponte da estrada de ferro.
Alguns autores, diferentemente,
dizem que a atual foi construída sobre os pilares da antiga.
Um desenho da ponte, feito há mais de
150 anos por Rugendas, revela que era coberta. Esse cuidado era necessário,
pois aumentava sua vida útil uma vez que eram feitas de madeira.
Em 1842, a ponte que Rugendas desenhou, foi queimada à época da Revolução Liberal, de forma a dificultar o avanço das tropas “corretivas” do Duque de Caxias, que marchavam em direção ao território mineiro.
[23] - Em 1824, Rugendas representou a travessia para o
território mineiro pela ponte do Rio Paraybuna, no Caminho Novo para Minas
Gerais.
A ilustração é de 1824 foi feita durante a expedição conduzida pelo Barão Georg Heinrich von Langsdorff
[Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Malerische Reise in Brasilien, 1ª Div. Pl. 17 - Fotografia: Vicente Mello].
Várias
fotos da região, incluindo as corredeiras do Paraibuna, a Estação Ferroviária
de mesmo nome e o colosso da Pedra do Paraibuna, um monólito de granito
com 415 metros de altura. Estava coberto no topo por esparsas
nuvens.
Corredeiras do Rio
Paraibuna. Foto: Fernando Mendes.
Faz
31 anos que passei, pela primeira vez, por essa região. Foi em 1972, quando me
mudei do Rio para Brasília. Naquela época, não existia a [nova] BR-040,
duplicada e pedagiada.
A
única ligação do Rio de Janeiro (RJ) com Juiz de Fora (MG) era a Rodovia União
- Indústria, posteriormente denominada de BR - 3, com traçado sinuoso e intenso
movimento de caminhões. Eram cinco horas de viagem do Rio (RJ) a Juiz de Fora
(MG). Hoje são apenas três horas de viagem pela [nova] BR – 040.
Depois
das fotos e de boas recordações dos tempos em que viajava na União-Indústria,
voltei ao pedal e alcancei a BR-040 por volta das 16h. A chuva continuava. Era
o primeiro banho de chuva de 2003. Lavou a alma e levou os restos de 2002, que
por ventura ficaram.
Corredeiras do Rio
Paraibuna. Foto: Fernando Mendes.
A
[nova] BR-040 tem duas pistas de cada lado e grade de proteção no centro. O
acostamento é espaçoso, com uns 3,0 m de largura. Foram 22 quilômetros até
alcançar Três Rios (RJ), às 17h. A chuva continuava fina e persistente.
Evitei entrar na cidade.
Acomodei-me no Motel Star, ao lado do Posto Trevo, às margens da BR - 040. Como era dia de semana, o pernoite saiu por R$ 20,00, uma pechincha.
Banho quente e relaxante, depois de pegar
chuva no lombo por quatro horas sem trégua. A baixa do dia foi a inundação no
interior da bolsa que carregava no bagageiro. Molhou tudo, roupas, livros,
folhetos com informações das cidades visitadas.
Improvisei
um varal no quarto, liguei o ar condicionado e torci para que tudo secasse até
o dia seguinte. Apaguei cedo.
Acordei
durante a madrugada. Olhei o céu. Estava parcialmente nublado. A Lua Nova,
quase em fase crescente, mostrava-se entre nuvens.
O
quarto fica de frente para a estrada (BR-040). Estava silenciosa e com pouco
movimento. Abri a janela para renovar o ar. A temperatura era bem agradável. O
asfalto da estrada estava molhado. Choveu o dia todo. Voltei a dormir
esperançoso por melhoras no tempo.
07/01/2003 |
||
11º
dia |
Três Rios (RJ) a Teresópolis (RJ) |
88
km |
Quando
acordei vi rastros de luz que penetravam pelas laterais das cortinas do quarto.
Não havia dúvida. O tempo estava aberto. Eram 7h. Pedi o café, desmontei o
varal improvisado e, às 8h 30, voltei a pedalar pela BR-040, com destino a
Teresópolis (RJ), 88 quilômetros à frente.
O nome "Teresópolis" é formado pela
junção do antropônimo (nome próprio de pessoa) "Teresa" com o
termo de origem grega pólis, significando, portanto, "cidade
de Teresa". Trata-se de uma homenagem à Imperatriz Brasileira Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, esposa de S.M.I o Senhor D. Pedro II.
De
Três Rios (RJ) a Itaipava (RJ) pedalei 32 quilômetros. Fazia calor e o
movimento na BR-040 era pequeno. Parei em Areal (RJ), na Lanchonete Brasília,
renovei o estoque de água e continuei até o Castelinho de Itaipava, no km
56.
Saí
da estrada, atravessei a ponte sobre o rio Piabanha e ingressei na BR-495, a Rodovia
das Hortênsias.
Os
primeiros oito quilômetros se desenrolam pelo Vale do Cuiabá, região de belas
mansões e tráfego intenso.
Vencido
esse trecho, o piso da BR-495, até então em asfalto, passa a ser de cimento,
blocos retangulares encaixados, semelhante à Estrada do Corcovado e à subida da Serra de Petrópolis (RJ).
Aos
poucos, sem pressa, fui vencendo a subida. Parava para fotos, tomar água nas
biquinhas ao longo da estrada e observar a beleza do lugar.
Quanto
mais pedalava e subia, mais belo se tornava o visual. Cada ponte que cruzava,
um rio de águas cristalinas abastecia as caramanholas. Os banhos foram
refrescantes.
Às
13h 15 cheguei à “virada da serra” e a subida cessou. Veio um trecho plano e
depois 10 quilômetros de descenso até o centro de Teresópolis (RJ). Logo, o
trânsito ficou pesado e procurei tomar a direção da saída para o Rio de Janeiro
(RJ).
BR - 495. Trecho
entre Itaipava (RJ) e Teresópolis (RJ). Foto: Fernando Mendes.
BR-495 - Itaipava (RJ) a Teresópolis (RJ). Fotos: Fernando Mendes.
Passada
a entrada da Granja Comary e depois de algumas perguntas a nativos, acerca de
hospedagem, cheguei à Pousada Recanto da Serra.
Eram
16h. Mais uma etapa foi cumprida dentro do planejado. Mesmo encarando uma
subida de 22 quilômetros, compensada pela beleza da região, cheguei muito bem.
Nada de dores, sintoma de fadiga, cansaço ou saco cheio.
Saí
para almoçar. A temperatura, pela primeira - e única vez -, durante a viagem,
estava abaixo dos 30ºC. O termômetro da rua marcava 23°C, bastante agradável.
Vi pessoas nas ruas vestindo casaco.
Degustei,
em um restaurante no centro, delicioso arroz com feijão acompanhado de salada e
dois ovos. Terminada a refeição, voltei à pousada, peguei a bicicleta e
pedalei até o Mirante do Soberbo, também
conhecido como Mirante da Vista Soberba.
É a partir daquele ponto [o Mirante] que se avista
o Pico Dedo de Deus, com seus 1.692 metros de altitude, cujo contorno
se assemelha a uma mão apontando o dedo indicador para o céu.
Serra dos Órgãos.
Teresópolis (RJ). O Dedo de Deus. Foto: Fernando Mendes.
O Pico Dedo
de Deus pertence à Serra dos Órgãos, um subgrupo da Serra do Mar. Embora o
monumento geológico seja associado [erroneamente] à cidade de Teresópolis (RJ),
essa obra da natureza pertence ao município de Guapimirim (RJ).
Da
sacada do Mirante do Soberbo é possível avistar a Baixada Fluminense
(Guapimirim - RJ), a Baía da Guanabara, banhando diversas cidades do Grande
Rio, entre elas Niterói, São Gonçalo e Magé, o Pão de Açúcar e, ao fundo dessa
moldura natural, a Baía de Angra dos Reis (RJ). Mas esse visual somente é
possível de ser avistado/fotografado em dias de tempo bom e pouquíssima
nebulosidade.
Em
Teresópolis (RJ) o tempo muda rapidamente em virtude, principalmente, da
altitude.
Naquele
dia 7 de janeiro, depois das fotos e do rolezinho pelo Soberbo, quando voltava
à pousada, percebi a chegada de pesadas nuvens, os cumulunimbus: combinação
das palavras [em latim] cumulus, que quer dizer amontoado, e de nimbus, que quer dizer chuva,
chuva esta que se estendeu pelo resto da tarde e ao longo da noite.
08/01/2003 |
||
12º
dia |
Teresópolis (RJ) a Nova Friburgo (RJ) |
90
km |
Acordei
com uma ladainha canina no prédio ao lado do hotel. Sonolento, lutei contra a
claridade. Fechei os olhos e, ao abri-los novamente, vi a beleza do dia.
Era
dia 8 de janeiro, aniversário de 21 anos de minha querida filha Daniela. Era o
dia de pedalar de Teresópolis (RJ) a Friburgo (RJ), uma das regiões serranas
mais bonitas do Estado, cortada pela RJ-130, estrada de verdes paisagens e
pitorescas formações rochosas.
Tomei
um excelente café da manhã e rumei em direção à saída de Teresópolis (RJ). O
céu doía de tanto azul e estava sem nuvens. Dia ótimo para pedalar. Depois
da chuvarada do dia anterior, o tempo foi camarada e manteve-se assim durante o trajeto.
Estava
ciente do sobe e desce moderado e ansioso para iniciar a viagem. A Rodovia
Estadual RJ-130 (Circuito Tere-Fri), que
liga Teresópolis (RJ) a Nova Friburgo (RJ), tem 77 quilômetros de
extensão e serpenteia uma das mais belas áreas serranas do Estado do Rio
de Janeiro.
Pedalei 10
quilômetros na direção de Além Paraíba (MG) - rumo Norte - até alcançar o
entroncamento com a RJ-130. No trevo de acesso a Nova Friburgo (RJ), fiz uma
parada para água e protetor solar. O sol estava “uma brasa, mora”.
A
RJ -130 desfila dentro da Mata Atlântica, no coração da região serrana do
Estado do Rio. É o acesso a cenários ideais para passeios, aventuras, esportes e
descobertas.
O
circuito Tere-Fri oferece diversos atrativos para os visitantes, além de
charmosos hotéis e pousadas da região. Uma das principais atrações é o Jardim
do Nego [24],
com suas lindas esculturas talhadas no barranco. Fica no km 55.
[24] - Se
foi do barro que Deus fez o homem é da mesma matéria prima que o escultor
cearense Nego realiza grandes obras de arte em seu sítio na estrada
Friburgo-Teresópolis. O Jardim do Nego é um museu ao ar livre e único do gênero
na Terra. Não é qualquer artista que consegue dar vida a barrancos e mantê-los
intacto por muito tempo. É que o musgo que envolve cada escultura protege
contra a erosão e ainda dá um colorido especial a cada uma, dependendo da
estação do ano.
O dono desse talento protege seu dom com tapa olho no meio da testa onde, segundo ele, se encontra uma terceira visão. Entra tantas esculturas será que existe uma preferida? É difícil para o artista definir qual é o melhor trabalho. Da mais antiga - a mulher que existe há vinte anos e que está sendo reestruturada – até a mais nova, o bebê, que ainda está em processo de criação de musgo. O visitante se encanta com cada detalhe. E se não bastasse tanta beleza, no final, Nego ainda dá uma amostra do seu outro talento, a música. Completando o clima de paz.
Disponível
em:<https://novafriburgoagora.com.br/noticias/detalhes/263/as-belas-esculturas-do-artista-geraldo-simplicio-o-nego-sao-destaque-em-jornal-britanico.html.
Acesso: 31/01/2003.
Nova Friburgo (RJ). Jardim
do Nego. Foto: Fernando Mendes.
Nova Friburgo (RJ). Jardim do Nego. Foto: Fernando Mendes.
No percurso da Tere-Fri, o clima de montanha convida a magníficos passeios e caminhadas em meio às belas paisagens, cercada de muito verde e riachos de águas cristalinas.
Tomei banho em dois. O Pico das Três Salinas é uma das mais belas paisagens do trajeto. Pode ser observado no município de Conquista (RJ).
Parada
na Churrascaria Linguiça do Padre. Estava famélico. O principal quitute da casa é pão
com linguiça. Comi três. Estavam ótimos. Era hora do almoço e o estômago
clamava por algo diferente de Nuttry ou rapadura.
As
araucárias estão presentes em muitos trechos, principalmente nos mais elevados.
A presença dessa árvore, de clima temperado frio e em área de clima tropical, é
explicada pela altitude do lugar. É um belo exemplo da altitude corrigindo a
latitude.
O
aniversário da minha filha mais velha (Daniela) contribuiu, em muito, para esse
dia ter sido deveras especial.
Depois
de percorrer esses maravilhosos 77 quilômetros da Tere-Fri ou RJ-130,
cheguei ao centro de Nova Friburgo (RJ) às 15h 30.
Logo
avistei o Hotel Avenida e por ali me instalei. O quarto no térreo me poupou de
subir escadas com a bike. Tomei banho e saí para rever a Suíça
Brasileira, onde estive pela última vez no inverno de 1990, passeando com
minhas duas filhas.
Não
almocei naquele dia. Ao lado do hotel, um restaurante anunciava rodízio de
massas à noite. Deixei para me deliciar na hora do jantar. Telefonei, em
seguida, à Daniela (filha mais velha) que estava em Brasília. Como a
UnB (Universidade de Brasília) repunha aulas após uma longa greve, ela e a
Suzana, a minha filha mais nova, não tiveram férias.
Parece
que faz pouco tempo, muito menos do que 21 anos, que a Daniela estava nascendo,
numa sexta-feira, 8 de janeiro de 1982. E assim passaram duas décadas e um ano.
Dormi muito mal naquela noite. O
colchão parecia uma tábua de bater carne.
09/01/2003 |
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13º
dia |
Nova Friburgo (RJ) à Barra do Sana (RJ) |
67
km |
Acordei e senti o corpo dolorido. Saí para sacar uns reais no BB e parti para Barra do Sana (RJ) com escala em Lumiar (RJ).
Ameaçava chuva. A temperatura era de 22ºC e o céu
estava cinza.
Tomei
a direção do Rio de Janeiro (RJ) até a pequena Muri, distante 8
quilômetros do centro de Nova Friburgo (RJ). Dobrei à esquerda no trevo e
ingressei na RJ-142, a rodovia Friburgo – Lumiar.
De
Lumiar (RJ) até Sana (RJ) a estrada é de terra. Os primeiros quilômetros da
RJ-142 atravessam uma região plana e com belas casas flanqueando estrada. A
seguir vieram as subidas, longas e pouco inclinadas.
Até
Lumiar são 22 quilômetros com asfalto bom e acostamento estreito. O movimento
de veículos era pequeno e a paisagem belíssima. O Rio Macaé apareceu para dar o
retoque final àquele cenário montanhoso e paradisíaco.
Em
uma subida mais longa avistei um cão que parecia me esperar para correr atrás
da bicicleta. Adotei uma tática diferente: seguindo conselhos de um ciclista
amigo, desci da bike e chamei-o.
Ele
logo veio abanando o rabo, sintoma característico desses cães carentes. Vão com
a cara de qualquer um, coisa típica de vira-lata. Comecei a brincar com ele que
se enturmou de primeira. Assim que fiz menção em ir embora, o bicho começou a
chorar e foi me seguindo. Como era um trecho de subida e fui pedalando devagar,
o vira-lata foi atrás.
Quando
a subida terminou e a descida começou, ele aumentou a passada e logo estava
correndo e me acompanhando. E assim fez por mais de cinco quilômetros. Parei e
o bicho estava com a língua quase arrastando no asfalto. Chamei um camarada
parado na porteira de uma chácara e pedi que ficasse com o cão. Ele ficou.
Continuei a pedalar e o cão chorava. Deve sofrer de GCA (Grande Carência
Afetiva).
Cheguei
a Lumiar (RJ) por volta do meio-dia. O Sol apareceu para brindar a minha
entrada pela pequena cidade.
A
500 metros da entrada, estava no centro, onde se localiza o Bar do Vovô, de
propriedade de um grande tricolor.
É
ponto de referência e central de informações. Nos finais de semana forma-se a
maior muvuca em frente ao Vovô.
Naquele
dia havia pouco movimento. A cidade estava vazia. Em Lumiar (RJ) o movimento
acontece nos finais de semana e feriados prolongados. Almocei um delicioso PF
no Vovô, deixei a bicicleta no bar e fui caminhar pela localidade.
Algumas
fotos e segui para Barra do Sana, agora em estrada de terra, com 30 quilômetros
de piso ruim, esburacado pela ação das águas superficiais e com fortes subidas
e descidas.
Atualização:
essa rodovia foi asfaltada.
O
Rio Macaé corre paralelo à estrada e quando o calor apertava, mergulhava em
suas águas límpidas e geladas.
Na
saída de Lumiar (RJ) avistei a Pedra Riscada (1.900 metros de altura).
Trata-se de um monólito de granito, à semelhança da Pedra do Paraibuna. Um
colosso. Seus riscos se devem à ação das águas das chuvas.
Eram 15 horas e, pelos meus cálculos, baseado no grau de dificuldade daquele trecho, chegaria a Sana (RJ) antes do entardecer, previsto para 19h 45.
Foi um trecho incrivelmente belo, no qual o Rio Macaé, com seus meandros e fortes corredeiras, é um espetáculo à parte.
Após terminar uma longa subida, avistei o rio, lá em baixo, serpenteando o terreno e quebrando o silêncio do lugar com o barulho das pequenas cachoeiras que se formam pelo caminho.
Estada
na Pousada do Geci. Uma casa adaptada para receber os hóspedes que
vão a Sana, 6º Distrito de Macaé (RJ), nos 52/53
finais de semana ao longo do ano.
Era
uma quinta-feira, o povoado estava deserto. Eu fui o único hóspede naquela
noite. Não gosto muito de muvuca.
Depois
do jantar e sob um luar espetacular, num céu forrado de estrelas, saí para
caminhar. Ouvia os barulhos de sapos e o chuá-chuá do rio Macaé, que acompanha
a estrada de entrada e saída de Sana (RJ).
Caminhei
por três horas e fui dormir. Como a natureza foi generosa com aquele pedaço do
Estado do Rio. Começa a sentir o clima de fim de festa. No dia seguinte,
Araruama (RJ) e, depois, Rio. Passou muito rápido.
10/01/2003 |
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14º
dia |
Barra do Sana (RJ) a Araruama (RJ) |
120
km |
Acordei
cedo e fui tomar café na padaria local. Eram 8h. Suava em profusão.
Alimentado,
peguei a bicicleta e fui conhecer as cachoeiras de Sana (RJ). São muitas. Um
dia é pouco para ver todas.
Fiquei
nas mais próximas ao povoado. Como fazia um calor senegalês, fiquei tomando
banho. Toma banho em uma, depois em outra, fui conhecer mais uma, e tome banho.
Água gelada, uma delícia para o corpo e a alma. A hora foi passando, relaxei e
desliguei do mundo.
Sana (RJ).
Foto: Fernando Mendes.
Quando me informei da hora, quase tive um treco.
Era meio-dia. Havia 120 quilômetros até Araruama (RJ). Tratei de dar
no pé.
Peguei
as minhas tralhas na pousada, paguei a conta e, às 12h 30, passei pelo Portal
de Sana, deixando aquele paraíso para trás.
Encarei 16
quilômetros pela estrada de terra (hoje está asfaltada) até chegar
a Casimiro de Abreu (RJ), às margens da BR-101. O calor era sufocante. Como o
banho de cachoeira estava gostoso. Eram 14h.
Casimiro
de Abreu (RJ) a sucursal do inferno. Subia um bafo do asfalto e a
temperatura devia estar próxima dos 45ºC. Tomei a direção de Silva Jardim (RJ),
30 quilômetros à frente, em meio àquele inferno de Dante.
Por
sorte existem muitos vendedores de água de coco pelo caminho. O movimento na
estrada [BR-101] era intenso em ambas as direções.
Pretendia
fazer aqueles 30 quilômetros em uma hora. Pretendia. O calor não dava trégua e
tive que reduzir o ritmo, embora o trecho seja rigorosamente plano.
O
Sol esquentava minha nuca e o capacete contribuía para aumentar a temperatura
na cabeça. Parava a cada três quilômetros para beber algo. Comecei a comprar
garrafas de água mineral de 1,5 litro e despejar da cabeça aos pés.
Alcancei
Silva Jardim (RJ) às 16h 10. Abandonei a BR-101 e atravessei a cidade, para
pegar a RJ-140 até São Vicente de Paula (RJ). Foram 22 quilômetros por uma
estrada recém-inaugurada e flanqueada por ciclovia. Maravilha.
O
calor não dava trégua. Em São Vicente (RJ) parei em uma padaria para
tomar sorvete. Comprei 4 garrafas de água de 1,5 litros e derramei-as
sobre mim assim que saí da cidade.
Mudei de estrada. Deixei a RJ-140 e peguei a
RJ-138. Muito esburacada e movimentada. Foram 12 quilômetros até
alcançar a Via Lagos (RJ-124), sob concessão, pedagiada e sem acostamento.
Oito quilômetros adiante, cheguei ao acesso a Araruama (RJ). Eram 18
horas. Faltavam 12 quilômetros para Araruama (RJ).
Parei
em um bar assim que abandonei a Via Lagos. Pedi uma água de coco, depois outra,
e outra, depois um picolé de goiaba, outro e fui ficando. Foi a única pausa
refrescante naquele encalorado dia rumo à Região dos Lagos. Nada de vento ou
brisa.
Foi
o dia mais quente da viagem. O calor me deixou zonzo em alguns momentos. Quando
o Sol baixou foi possível continuar.
Cheguei
a Araruama (RJ) pouco antes da 20h. Logo encontrei um hotel. Jantei uma
deliciosa pizza, saí para caminhar um pouco e cama.
De
madrugada desabou um temporal bíblico. Temi pelo dia seguinte, pois o roteiro
previsto era quase todo em estradas de terra até Itaipuaçu (RJ).
Sábado, 11 de janeiro, último dia de viagem. De Araruama (RJ) ao Rio de Janeiro (RJ) foram 130 quilômetros pela orla. Voltei a ver o Atlântico Sul depois de duas semanas pedalando pelo interior do Estado.
11/01/2003 |
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15º
dia |
Araruama (RJ) ao Rio de Janeiro (RJ) |
130
km |
Acordei
depois das 9 da matina. Consegui sair de Araruama (RJ) às 10h 35. Segui direto
para Bacaxá (RJ) e de lá para Saquarema (RJ). Fotos na praia de Itaúna e
continuei (sempre à beira-mar) com o Atlântico à esquerda, no meu través leste.
Saquarema (RJ). Praia de Itaúna. Foto: Fernando Mendes.
O
asfalto da orla cedeu lugar à estrada de terra, às 11h 50. Cheguei a Jaconé
(RJ) às 13h 20. Apesar da temperatura elevada, o vento melhorava as coisas. Se
tivesse que encarar outro dia quente como o anterior, pensaria duas vezes.
Ponta
Negra (RJ) foi alcançada às 13h 40 e passei ao largo da Lagoa de Maricá às 14h
15. Faltavam 76 quilômetros para o Rio de Janeiro (RJ).
A
pior parte foi quando atravessei a extensão da Praia de Itaipuaçu (RJ). A orla
é muito grande, movimentada naquele sábado e o piso da rua está péssimo. Muitos
buracos. Eram 16h quando cheguei ao final da praia.
Abandonei
a orla e segui em direção à estrada que atravessa a serra da Tiririca, uma
pirambeira de quase 1 quilômetro inclinadíssima. Pedalei até onde foi
possível. Desci e empurrei a bicicleta.
Carro
1.0 sobe em 1ª marcha e esgoelando. Essa serra atravessa a Pedra do Elefante e
a estrada me levou à Praia de Itaipu, do outro lado do morro, de onde se tem
uma vista magnífica do Rio de Janeiro. É possível enquadrar o Pão de
Açúcar, Corcovado, Morro Dois irmãos e Pedra da Gávea.
E
veio o meu inferno astral daquele sábado. De Itaipu até a Estação das Barcas,
no centro de Nictheroy, é longe para cachorro. Uns 35 quilômetros,
pedalando em meio ao trânsito frenético de um final de sábado, com muito calor
e praias lotadas. Em São Francisco atravessei um túnel. Nunca soube
da existência de túnel em Niterói (RJ).
Consegui,
depois de muito pedalar, chegar à Estação das Barcas, no centro, às
18h 55. Martim Afonso saindo às 19h. Apressei-me em comprar o
ingresso para mim e para a bicicleta. Às 19h zarpou rumo à Praça XV de
Novembro, no centro do Rio de Janeiro.
Chegar
à capital fluminense passando por Niterói (RJ) é bem mais agradável
do que pela Avenida Brasil e/ou Baixada Fluminense.
Foi
um entardecer para fechar a minha viagem com chave de ouro. O Sol se pondo e
deixando um rastro prateado nas águas da Baía da Guanabara.
Desembarquei
na Praça XV às 19h 20 e pedalei 20 quilômetros até minha casa, no
Leblon. Foram os últimos giros do pedal. Faltava pouco para concluir outra
magnífica e bem planejada viagem em duas rodas.
Atravessei
a Praça XV, passei pelo Aeroporto Santos Dumont e ingressei na ciclovia. As
cores do entardecer brindavam aquele fim de sábado, com praias cheias e muito
calor.
Na
Enseada de Botafogo, mais fotos do fim de tarde e do fim da viagem. Desci a
rampa da garagem e parei a bicicleta no hall do elevador de
serviço. Desliguei o cateye. Eram 20h 30. Missão comprida e muita
bem cumprida.
Foto: Fernando Mendes.
Voltei para Brasília (DF) no dia 23 de janeiro.
Bicicleta no bagageiro do ônibus. Terminei a viagem do mesmo jeito que
comecei.
Pedalei
do Leblon à Rodoviária Novo Rio, embarquei no ônibus leito das 14h 30 e cheguei
a Brasília (DF) do dia seguinte, às 7h da manhã.
Girei
os pedais [10 km] da Rodoferroviária até a minha casa, na Asa Norte. Tudo saiu
exatamente como o planejado. Planejar é a regra.
Brasília
(DF), 31/01/2003.
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